Cultura
Um thriller real no reino de Putin
Em Ordem de Bloqueio, Bill Browder, ex-bilionário da oligarquia russa, relata perseguições e assassinatos


No que diz respeito às relações ocidentais com Vladimir Putin, Bill Browder fez o papel do canário na mina de carvão – neste caso, mais apropriado seria dizer na mina de ouro. Formado pela Escola de Administração de Stanford, o escritor chegou em Moscou no fim dos anos 1990, após uma temporada em Londres, decidido a fazer fortuna.
Como detalhou em seu livro anterior, Aviso Vermelho, foi exatamente o que fez. Montou a Hermitage Capital Management, com a ajuda do bilionário Edmond Safra, de Mônaco, que acabaria por morrer em um incêndio causado por um de seus empregados.
Aquela foi uma época de especulação selvagem: os ativos estatais pós-soviéticos eram vendidos a baixo preço e, com isso, criou-se uma oligarquia venal. As disputas de negócios eram, geralmente, resolvidas à bala, e a expectativa de vida dos banqueiros foi radicalmente reduzida.
Quando Putin chegou ao poder, na véspera de ano-novo de 1999, prometendo acabar com a corrupção, Browder sentiu-se aliviado. E continuou, nos três anos seguintes, apoiando Putin.
Nesse período, Browder fez fortuna, transformando o Hermitage no maior investidor em carteiras estrangeiras na Rússia. Sua grande inovação foi o ativismo dos acionistas, que passaram a visar práticas corruptas em algumas grandes empresas, como a Gazprom. Com isso, o preço das ações subiu.
Mas então, em 2003, Putin prendeu Mikhail Khodorkovsky, à época o oligarca mais rico da Rússia, e, em vez de se opor à corrupção, começou a pressionar a oligarquia – que passou a se sentir devidamente intimidada. Esse movimento significou o fim das ações frenéticas de Browder e sua deportação, em 2005.
Dezoito meses depois, os escritórios do Hermitage foram invadidos pelas autoridades russas e sua papelada foi confiscada. Os documentos foram usados por autoridades do Ministério do Interior para encenar um esquema de dedução de impostos de 230 milhões de dólares.
Essas mesmas pessoas culparam Browder pelo golpe. E quando seu advogado, Sergei Magnitsky, denunciou as autoridades responsáveis pela fraude, elas o prenderam.
Detido por quase um ano sem acusação, Magnitsky morreu alguns dias antes de ser libertado. Segundo Browder e investigadores independentes, ele foi espancado até a morte por carcereiros.
A partir daí, Browder, britânico naturalizado, radicado em Londres, dedicou-se a fazer justiça para seu amigo, principalmente realizando lobby pela Lei Magnitsky, que autorizava o governo dos Estados Unidos a punir infratores dos direitos humanos e congelar seus bens. Uma lei semelhante foi promulgada em 33 países, incluindo o Reino Unido e a União Europeia.
No entanto, uma vez aprovada, a Lei Magnitsky permaneceu quase sem uso. Só depois da invasão russa à Ucrânia as autoridades do Reino Unido passaram a notar o predomínio de bilionários russos corruptos que lavavam dinheiro em Londres. Como Browder nos informa no final do livro, a maior parte dos 230 milhões de dólares do golpe fiscal chegou à Grã-Bretanha.
ORDEM DE BLOQUEIO. Bill Browder. Tradução: Alexandre Raposo, Cláudia Belhassof e Paula Diniz. Intrínseca (336 págs., 69,90 reais)
As autoridades locais não fizeram nada a respeito. Mas as autoridades russas, sim. Visando Browder. O financista viu-se envolvido em um caso, nos EUA, contra uma empresa russa, de fachada, que havia usado parte dos 230 milhões de dólares roubados para comprar propriedades em Nova York.
Browder, como lemos no recém-lançado Ordem de Bloqueio: Uma História Real Sobre Corrupção e Assassinato na Rússia de Putin também foi alvo de uma série de mandados de prisão da Interpol e chegou a ser preso em Madri. Ele narra que, em princípio, não tinha certeza se os policiais espanhóis eram reais ou agentes russos disfarçados. Depois, temeu ser extraditado para Moscou.
Por mais aterrorizante que esse incidente possa ter sido, ele empalidece diante de outro momento do livro, em que Browder relembra a cúpula de Helsinque, em 2018. No encontro, Putin, do nada, se oferece para trocar alguns agentes de inteligência russos por Browder e, numa entrevista conjunta, Trump disse achar “a oferta incrível”.
Browder estava então de férias em sua casa, no Colorado, e imaginou a chegada de furgões pretos do serviço secreto que o levariam para Moscou, onde enfrentaria um julgamento fraudulento e uma morte misteriosa atrás das grades.
Trata-se de uma história incrível, contada com ritmo intenso e verve de thriller. Há algo profundamente ofensivo ao nosso senso de justiça quando um homem inocente é enquadrado por forças poderosas. É um medo que Dumas e Hitchcock usaram com efeito dramático. O mais preocupante aqui é ver como o establishment ocidental tem sido leniente com as mentiras e os crimes russos.
Advogados, políticos e os idiotas úteis foram recrutados com sucesso para a causa russa, seja por meio de incentivo financeiro, suborno, sentimentos bovinos anti-Ocidente ou, talvez, por pura complacência.
Representantes de todos esses grupos aparecem neste livro por meio do qual sabemos que testemunhas da corrupção russa morrem em circunstâncias bizarras, caindo de telhados ou sofrendo súbitos ataques cardíacos. Há também envenenamentos, ameaças, intimidações e toda a gama de truques sujos.
Ao longo de tudo, Browder permanece surpreendentemente otimista e resoluto. Talvez a história de um homem muito rico enfrentando o Estado russo pareça indulgente ante o pesadelo que se desenrola na Ucrânia. Mas são eventos relacionados. Como o livro deixa claro, demoramos demais para reconhecer a verdadeira natureza do regime que os conecta. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um thriller real no reino de Putin”
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