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Um tanto de dor, um tanto de graça

Em Errante, Adriana Calcanhotto volta a beber da fonte tropicalista, sem esquecer sua porção Lupicínio Rodrigues

Um tanto de dor, um tanto de graça
Um tanto de dor, um tanto de graça
Herança. A partir do fim de abril, a cantora e compositora fará também a miniturnê Gal: Coisas Sagradas Permanecem, que ocupará datas previamente agendadas para Gal Costa – Imagem: Leo Aversa
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Adriana Calcanhotto é, dentre todas as cantoras autoras surgidas no País nas últimas décadas, a que melhor traduz o espírito do modernismo e do tropicalismo brasileiros.

Em 1998, ela flertou com a estética tropicalista em duas faixas do disco ­Maritmo: Parangolé Pamplona, citação ao conjunto de obras criado pelo artista visual Hélio Oiticica, e Vamos Comer Caetano.

Duas décadas mais tarde, ela mergulharia na Semana de 22 e no Manifesto Antropofágico (1928), no qual Oswald de Andrade defendia a ideia de se devorar a cultura internacional, assimilá-la e depois regurgitá-la em forma de arte brasileira. Dessa pesquisa, nasceria um dos melhores espetáculos de Adriana: A Mulher do Pau Brasil (2018).

“Esses movimentos são meus objetos constantes de estudo porque, até agora, não encontrei algo que se encaixe melhor no meu trabalho que as ideias por eles propostas”, diz a artista, em entrevista a CartaCapital, por Zoom, às vésperas do lançamento de seu novo álbum.

Errante, disponível nas plataformas de streaming desde a sexta-feira 31, retoma com força essas influências. A canção Prova dos Nove, por exemplo, é inspirada em uma frase do manifesto de Oswald – “A alegria é a prova dos nove”. Rogério Duprat, ícone do Tropicalismo, arranjador de discos de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Os Mutantes, ecoa no naipe de sopros dessa mesma faixa.

Errante foi gravado no fim de 2021, quase como se os músicos estivessem ao vivo, durante nove dias, na cidade de Araras, na região serrana do Rio de Janeiro. A banda ia criando os arranjos e, quando os considerava prontos, registrava as canções numa abordagem quase­­ ­jazzística – no sentido da experimentação.

Se tal abordagem foi possível é também porque Adriana prefere trabalhar em conjunto, a designar um diretor musical que possa satisfazer suas vontades. “Sou uma pessoa de banda e me cerco de outras pessoas que tocam com mais liberdade. A única coisa que falo é se o andamento está bom ou não para cantar”, diz ela, referindo-se ao apoio de Davi Moraes (guitarra), Alberto ­Continentino (baixo) e Domenico Lancelotti (bateria), o mesmo trio que esteve com ela no álbum Micróbio do Samba (2011).

O álbum foi gravado no fim de 2021, na região serrana do Rio, com um espírito de improvisação

A interação da cantora e compositora com os instrumentistas torna-se evidente no resultado de Errante, um disco repleto de referências e misturas de gêneros e estilos. Larga Tudo é um maxixe que, aos poucos, se transforma num samba típico do Recôncavo Baiano, com direito até a um prato tocado com a faca – especialidade de Dona Edith do Prato, que tocou em Araçá Azul, de Caetano Veloso. Outro toque original nessa faixa é a presença do trompete cretino, instrumento criado pelo maestro e compositor suíço Walter Smetak (1912-1984), in­fluência na obra dos tropicalistas.

Era Isso o Amor?, que Adriana diz ter composto em formato de samba, foi transformada num rock lisérgico, no qual a guitarra se destaca. Já Nômade passeia ligeiramente pela música africana. “Ela foi composta no ônibus de turnê do Gilberto Gil: eu ia para a parte de cima e sentia a vibração do motor”, conta ela. A letra faz referências à vida na estrada e traz imagens prosaicas, como a do cartão magnético do quarto do hotel esquecido no bolso e só encontrado três dias depois. “Nunca pensei que isso pudesse acontecer também com Gil”, brinca.

Simultaneamente ao lançamento de Errante, Adriana vai encarar uma responsabilidade armada pelo destino. No dia 27 de abril, em Porto Alegre, ela dá o pontapé inicial de Gal: Coisas Sagradas Permanecem, uma miniturnê na qual interpretará canções do repertório da musa do Tropicalismo, morta em novembro de 2022.

Os shows serão realizados em datas previamente agendadas, que não puderam ser cumpridas por Gal. “A gente pensou nela porque é uma pós-tropicalista e entendeu como poucos a ideia do movimento: seu repertório vai de grandes ­poetas a canções de cunho popular, algo que também foi marcante na carreira de Gal Costa”, diz Marcus Preto, diretor artístico do espetáculo. “E Gal amava a Adriana.”

Gal: Coisas Sagradas Permanecem foi construído a partir de canções clássicas do repertório da artista baiana, de músicas de autoria de Adriana e de outras pareceram soar adequadas para este show-homenagem. “Adriana diz: ‘Eu adoro essa música, vou ver se essa música gosta de mim’”, resume Preto.

“Só dá Gal Costa no meu algoritmo”, diz Adriana, que tem devorado entrevistas, discos e vídeos da cantora baiana. As duas, aliás, se dedicaram quase simultaneamente ao mesmo compositor. Em 2015, Gal fez uma turnê cantando músicas de Lupicínio Rodrigues, famoso pela forma como relatou as dores de amores em canções como Nervos de Aço e Vingança. Adriana, por sua vez, lançou em 2018 Loucura: Adriana Calcanhotto Canta Lupicínio Rodrigues, no qual fazia uma releitura orquestral das obras do autor.

“Foi o projeto de uma universidade, no qual autores gaúchos tinham sua obra revisitada por artistas locais. Mas o DJ Zé Pedro sempre me disse que Lupicínio me pertencia”, ri. E não é difícil, em Errante, reconhecer a dor de Lupicínio em Quem te Disse, Levou do Samba a Minha Fantasia, Jamais Admirei e Reticências.

“Tem muito de Lupicínio e Ataulfo ­Alves ali, por conta dos naipes de metais e dos poucos acordes”, explica ­Domenico Lancelotti, baterista do álbum. Doída, engraçada, polirrítmica e vanguardista, Adriana Calcanhotto é, no fundo, uma tropicalista. •

Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A tragédia da oposição’

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