Cultura

Um retrato do combate feminino na Colômbia

No longa “Alias María”, de José Luis Rugeles, uma menina de 13 anos enfrenta o machismo em meio à guerrilha

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O diretor José Luis Rugeles é pouco conhecido no Brasil, embora tenha se servido de atores e músicos brasileiros em seu primeiro longa-metragem, García, em 2010. O filme, que não chegou ao circuito comercial local, encena uma trama com ingredientes de humor negro sob a Bogotá nublada, percorrida de bicicleta pelo protagonista, o ingênuo García interpretado pelo mexicano Damián Alcázar.

Alias María, o segundo longa de Rugeles, não repete o raro humor do filme anterior. Trata-se de um filme cuja sutil ação se dá sob o pano de fundo documental, uma ficção realista que resume, pelos olhos da protagonista, um intento psicológico. 

O filme estreou na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no ano passado, e Rugeles espera alcançar o circuito comercial brasileiro neste ano ainda, após a estreia do filme na França e na Bélgica.

Esta rara e independente narrativa cinematográfica colombiana cujo tema é a guerrilha mostra a ação dos combatentes sob seus muitos aspectos crueis. Aos 13 anos, María está grávida, mas não se verá autorizada a ter o filho, cujo pai é seu superior.

As guerrilheiras devem abortar até o terceiro mês de suas gestações, embora uma outra combatente, mulher do comandante do grupo, esteja autorizada a dar à luz o filho na selva, contra as determinações da organização guerrilheira. A missão de María é a de entregar em segurança tal bebê a uma familia camponesa, enquanto espera conseguir traçar seu próprio caminho.  

“A sociedade colombiana é ainda hoje muito machista”, diz Rugeles a CartaCapital, na entrevista a seguir. “Mas também creio que exista na Colômbia uma espécie de matriarcado, quer dizer, mulheres que, com uma força impressionante, transformam suas vidas, são mães chefes de família, levam seus filhos adiante, trabalham e enfrentam com coragem esse machismo milenar.”

CartaCapital: Como nasceu a ideia de filmar Alias María? Baseia-se em algum relato real, conhecido?

José Luis RugelesDiego Vivanco, o roteirista de García, começou a pesquisa há cinco anos. Ele me passou um primeiro roteiro e começamos a entrevistar jovens reinseridas. Começamos a construir uma personagem que não só nos comoveu, como inevitavelmente nos comprometeu com a temática de maneira contundente. Claramente, ao nos determos nessa realidade à qual muitas vezes somos indiferentes, surgem perguntas, dores, mas sobretudo uma vontade imensa de contar algo que nos produza reflexões e que, por sua vez, nos confronte.

Entrevistamos mais de 20 garotas que tinham saído da guerra havia muito pouco tempo. A partir desses relatos começa a se formar um ponto de vista. Assim nasce María, uma somatória de muitas garotas que conheci e entrevistei. É uma menina de 13 anos com uma arma, uma mulher com um parceiro, uma guerreira destacada, uma adolescente que tem um segredo: está grávida. Esse fato acaba sendo o motor que lhe dá força e a transforma em heroína. Sob suas ansiedades, seu olhar, vemos os restos de uma desgastada guerra do absurdo, onde encontramos um sem-sentido geral que não avança para lugar nenhum.

Este filme nasce na ficção e, através das entrevistas com ex-combatentes, toca a realidade e se alimenta desta para retornar à ficção.

CC: Parece-me que a guerrilha colombiana raramente é explorada como tema cinematográfico. Há alguma razão para isso? Por que, no seu caso, ao abordar a guerrilha, escolheu narrar a história de uma adolescente oprimida por ela?

JLR: Na Colômbia existem atualmente muitos conteúdos audiovisuais com a temática da guerra e do narcotráfico. Casualmente, a sétima arte não tem como protagonista essa temática, e creio que isso se relaciona ao fato de sermos um país com uma guerra em curso. Todos os meios de comunicação nos fustigam há mais de 50 anos com um excesso de realidade devastadora. Estamos em guerra há muito tempo. Várias gerações nasceram e cresceram no meio desse conflito, e isso de uma forma ou de outra gerou um mecanismo de defesa na sociedade, tornando-a indiferente.

Por isso mesmo creio também que chegou o momento de romper com esse esquema que geramos. Claramente é preciso contar mais histórias que abordem essa temática. Eu senti a necessidade de fazê-lo, pois creio que o país precisa falar e exteriorizar todos esses anos de guerra. A arte é um caminho válido para fazer isso, pois expressa o reflexo da história e seu contexto. Temos muito medo de falar profundamente sobre nossa violência, e por isso escolhemos caminhos narrativos frívolos, mostrando assim o lado mais perverso de nossa sociedade.

Em Alias María não abordamos a guerra como um espetáculo de onde saem grandes heróis. O que mostramos é um panorama desolador e cotidiano, onde tocamos a parte humana dos combatentes. Tudo isso se expressa através dos olhos de María, uma menina que de certa maneira quer transformar seu destino por amor, mas não sabe como fazê-lo, tal qual o reflexo da história de violência deste país, que acaba sendo um padrão que se repete como um círculo vicioso sem fim.

CC: Enquanto narra uma história de tirar o fôlego, seu filme discute os vários impedimentos à situação da mulher, o machismo dos camaradas da “esquerda”, tão brutal quanto o dos homens da “direita”. Você diria que é uma situação também vivida pela mulher colombiana de uma maneira geral? A Colômbia é (como, a meu ver, ainda o Brasil) um país machista?

JLR: Sim, creio que a sociedade colombiana é ainda hoje muito machista, mas também creio que exista na Colômbia uma espécie de matriarcado, quer dizer, mulheres que, com uma força impressionante, transformam suas vidas, são mães chefes de família, levam seus filhos adiante, trabalham e enfrentam com coragem esse machismo milenar.

CC: Alias María faz recordar grandes obras do neorrealismo italiano, como Sciuscià, de Vittorio de Sica. E obras assemelhadas a ele, como Los Olvidados, de Buñuel. Sua história também é contada de maneira direta, em ambientações reais, ao ar livre, centralizada na figura marginal da criança, que talvez represente a infância de um país, a esperança de que cresça e se transforme. Foi seu intento buscar proximidade com essa cinematografia? Quem o inspirou artisticamente para a realização de Alias María?

JLR: Embora o neorrealismo italiano seja um momento do cinema que me pareça absolutamente inspirador, não procurei de forma consciente uma referência ali, embora realmente me agrade a maneira como esta pergunta foi formulada, sobretudo porque coincidiu com a visão da infância de um país que acaba sendo simplesmente a esperança de vê-lo crescer um dia.

Antes de citar um filme em particular no qual me inspirei, gostaria de mencionar os diretores que admiro e que de alguma maneira me influenciam, já que sempre retorno a eles e a seus filmes em minhas buscas criativas: Andrei Tarkovsky, Rainer Fassbinder, Terry Gilliam. Certamente no recôndito inconsciente de Alias María se encontrará afinidade ou um gesto a esses grandes diretores.

Em termos narrativos, interessei-me pelo filme russo chamado Come and see, do diretor Elem Klimov. Um relato desesperador do fim da Segunda Guerra Mundial na Rússia, retratado através dos olhos do menino Flyora, que vai se transformando e endurecendo ao longo do filme.

Durante a concepção de Alias María, vimos principalmente documentários, para assim poder construir nosso olhar sobre a guerra, levando em conta que o tema desse filme é muito delicado e complexo. Isso nos obrigou a investigar todas as possíveis faces, para assim poder falar de um lugar próprio. Dentro dos documentários destaco um que se chama Impunity, de Hollman Morris e Juan José López, que para mim é mais que uma referência cinematográfica. É um documento jornalístico fundamental, pois se atreve a mostrar uma crua realidade, convidando o espectador a empreender uma reflexão a partir de outra esquina.

Além do cinema, para mim é vital a experiência humana, é uma constante em minha vida. Primeiro se manifestou através da fotografia – retratar os rostos das pessoas carregados de histórias, de experiências de vida. Depois veio o amor por essas histórias e a busca por contá-las em outro formato, um que permitiria me aprofundar nelas, mantendo a profunda intimidade, a singularidade da experiência humana.

CC: Como você selecionou Karen Torres, a protagonista de Alias María?

JLR: Ao ter de procurar uma atriz de 13 anos, sabíamos que não encontraríamos uma profissional dessa idade, então empreendemos um casting em colégios de áreas com altos índices de violência. Foi um casting de quase 1.200 crianças. Fizemos oficinas de teatro juntando grupos delas e começamos a depurar até chegarmos a cerca de 20. Então decidimos começar a trabalhar com câmeras, fazendo exercícios de interpretação curtos e simples e falsas entrevistas com os meninos [há várias crianças a atuar no filme], como se eles fossem os verdadeiros personagens. Foi aí que percebemos a força e a sinceridade na maneira de atuar de Karen. Sua capacidade de escuta lhe permite transmitir oceanos e seu olhar é perfeito para a grande tela, já que se expressa por si só, sem necessidade de palavras.

Digo que nela não encontramos um ator natural, mas, pelo contrário, encontramos uma atriz que não havia percebido que o era. Ao falar dela, e parafraseando uma amiga, sinto que no plano final do filme o olhar de Karen não só contém seu drama, contém o mais difícil de expressar, o futuro… Nesses olhos reside o futuro.

CC: O filme guarda algumas semelhanças com Garcia, embora em Alias María você não lide de maneira idêntica com a ingenunidade e o humor dos personagens. Nos dois filmes, há as figuras femininas fortes e embrutecidas, como as de Amalia (García) e da esposa do comandante (Alias María). De onde parte esse perfil de mulher autoritária?

JLR: As mulheres colombianas têm algo, uma espécie de força sobrenatural que as leva a lugares e situações incríveis, opostas, extravagantes. Apesar de viverem em sociedades machistas que as condicionam a ser cegas e alheias a seus destinos, levam em seu sangue um gene autoritário e transformador, tão simples quanto aquele das mulheres que dão à vida. Não creio que possamos falar exclusivamente das mulheres colombianas sob esse aspecto. Essa força quase animal reside no gênero feminino.

CC: Sabemos, ou julgamos saber, que a Colômbia é um país “literário”, ao menos mais interessado em leitura que o brasileiro. No Brasil, os maiores leitores são as mulheres e as crianças de 10 anos. Quando você escreve um filme, considera que fala a um público exigente literariamente?

JLR: Não creio que eu fale a um público literariamente exigente, creio mais que o público é exigente com o conteúdo do que se conta, e quer ver. E aí se transforma em um público crítico, daí seu interesse por conteúdos mais leves.

CC: Quais são as principais dificuldades de quem faz cinema na Colômbia? Tem sido mais fácil financiar os filmes nos últimos anos?

JLR: Fazer filmes independentes é sempre um desafio, sobretudo na América Latina. Não só é um trabalho titânico financiá-los, como também distribuí-los e vê-los projetados em alguma sala, para que um pequeno grupo de pessoas possa vê-los. Uma verdadeira tarefa que exige anos de esforços e uma tal convicção que lhe permita cair e voltar a se levantar mil vezes.

Na Colômbia estamos passando um momento muito bom no cinema, mas também sinto que estamos em uma adolescência cinematográfica, pois antes só tínhamos autores com uma filmografia. Hoje são produzidos na Colômbia cerca de 28 filmes por ano, o que implica que existe uma diversidade de temas e formas narrativas, algumas maravilhosas, outras nem tanto. Mas sem dúvida essas tentativas são as que constroem uma indústria e uma história do cinema colombiano. Portanto, sinto que trilhamos um caminho válido e sobretudo próprio.

Diga-me, se possível, de seus projetos de internacionalização. Espera poder lançar comercialmente estes dois filmes no Brasil? Ou nos Estados Unidos? 

JLR: Claro que espero poder lançar o filme no Brasil e em todos os países possíveis. Trabalhamos com um grande agente de vendas internacional, a Urban. O filme Alias María foi vendido para mais de 20 países e já estreou na Argentina, Grécia, Colômbia. Agora em fevereiro chega na França e na Bélgica, e assim vamos nos aproximando do resto do mundo.

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