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Um retrato anticelebratório

Independências, exibida pela TV Cultura, enfrenta os apagamentos impostos pela visão oficial do Império

Um retrato anticelebratório
Um retrato anticelebratório
Direção. Luiz Fernando Carvalho restitui o papel das matrizes africana e indígena na identidade brasileira - Imagem: TV Cultura e Redes sociais
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O centenário da independência, em 1922, é hoje lembrado pela erupção modernista que propôs reimaginar o Brasil. Os 150 anos foram celebrados pela ditadura militar com ufanismo e nas imagens empoeiradas de Independência ou Morte. O bicentenário chegou e encontrou um país órfão de imagens.

Em meio a esse estado de catalepsia, a série Independências tem o efeito de despertar quem fica deitado eternamente em berço esplêndido. O projeto da TV Cultura foi desenvolvido ao longo de um ano e meio e tem o diretor Luiz Fernando Carvalho como sua face mais reluzente.

A ambição dos 16 episódios, cuja exibição começou na quarta-feira 7, é ir além da celebração para indagar o que somos.

“Duvido da celebração, não concordo com ela. Duvido um pouco da ideia de nação e duvido também se somos uma democracia. Duvido, sobretudo, das representações, das imagens desse passado. Por isso, Independências vai na contramão da celebração”, provoca Carvalho.

Autor de um filme excepcional, Lavoura Arcaica (2001), e diretor de minisséries como A Pedra do Reino (2005) e de novelas como O Rei do Gado (1996-1997), Carvalho aceitou o convite como um desafio.

“Independências surgiu como oportunidade para refletir sobre a brasilidade, algo que sempre fiz em meus trabalhos”, diz. “O projeto tinha uma abertura que permitia fazer ética e esteticamente uma reflexão sobre o País, incluindo os apagamentos impostos pela visão oficial do período imperial.”

Na contramão das comemorações oficiais que se fantasiam de verde e amarelo e ostentam um coração conservado em formol, Independências não pretende erigir mais um monumento ao passado.

A diferença que salta aos olhos, logo no primeiro episódio, é a restituição do papel das matrizes africana e indígena na constituição da identidade multifacetada do Brasil. A inclusão não se revela somente como representatividade ou espaço na tela.

“Duvido da ideia de nação e duvido se somos uma democracia. Duvido, sobretudo, das representações desse passado”

Os personagens de origens africanas e indígenas dividem o protagonismo com os portugueses, têm capítulos separados na estrutura dos episódios e se expressam nas línguas originais.

A ênfase na pluralidade não se resume a este modelo narrativo distributivista: ela constitui a própria linguagem de Independências. O desenvolvimento da série contou com a contribuição de pesquisadores, professores de filosofia africana, mestres de cultura indígena, poetas e escritores, além de historiadores.

“Desde a escrita, nossa primeira atenção foi buscar essas vozes, que sempre estiveram fora das versões oficiais, e incorporar as coordenadas que ficaram apagadas”, explica. “Quando fiz Lavoura Arcaica, me dei conta das coordenadas mediterrâneas em nós, da sobrevivência da tragédia grega. Neste projeto, me dei conta de várias coordenadas, das africanas às indígenas.”

Os saberes trazidos pela gama de especialistas não visaram, como é comum em produções históricas, saciar a ânsia de fidelidade. O que eles fizeram foi dar aos criadores liberdade para experimentar diferentes modos de ver e de interpretar.

“As culturas não brancas, não europeias, não obedecem ao padrão narrativo em que tudo tem início, meio e fim. As cosmogonias da matriz africana e indígena, por exemplo, não são lineares, progressivas. Elas são circulares”, descreve o diretor. “Essas cosmogonias estavam integradas ao cotidiano da sociedade urbana do Brasil no século XIX. Não tem como apagá-las.”

Nesse sentido, Independências pode assombrar o espectador acostumado ao padrão da produção audiovisual contemporânea. A narrativa convida a outro tipo de experiência, desvinculada do encadea­mento de situações e livre das convenções da dramaturgia.

A expansão da linguagem e dos temas encontra na estética das imagens uma nítida posição dissidente. As representações icônicas da história, da qual o quadro O Grito do Ipiranga, de Pedro Américo, é um paradigma, impuseram um cânone.

“Minha busca por imagens serpenteia o cânone, conversa com ele e o desafia. Eu quis desafiar clichês absurdos, como o do negro vestido com saco de batata, esse clichê inventado pela civilização europeia que se perpetuou como imagem do passado”, diz o diretor. “No fim das contas, tento fazer uma reflexão sobre a branquitude, sobre a colonialismo, sobre o que nós, enquanto herdeiros de uma cultura branca, fizemos com as outras potências que nos habitam.”

O desafio não é pequeno. Além de projetar novas imagens do que foi apagado ou extinto, a série evita reproduzir a iconografia herdada, aquela que até hoje coloniza o nosso imaginário.

Nas cenas da corte portuguesa em que se reconhecem personagens, por exemplo, os elementos cênicos, a maquiagem e até a atuação parecem alterados. Em vez de serem representadas como nos retratos expostos em museus e reproduzidos nos livros de história, as personagens são vistas como se estivessem defronte de espelhos que distorcem as figuras, tornando-as disformes, grotescas.

O excesso visual e o antinaturalismo, marcas de estilo, deram a Luiz Fernando Carvalho um lugar distinto na tevê. Agora, ele dá um passo mais largo e confronta o espectador com um país de extremos, admirado por seu imaginário abundante e, ao mesmo tempo, incapaz de se ver. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1225 DE CARTACAPITAL, EM 14 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um retrato anticelebratório “

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