Cultura

Um pouco de poesia

De repente, o mundo inteiro pode ler os meus poemas que estavam guardados a sete chaves

Um pouco de poesia
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Tremi na base! Quem ainda se lembra dessa expressão? Tremi na base quando ouvi um barulhinho bom no meu computador e piscou o recado no Facebook de um velho amigo dos tempos do Colégio Marista. Curto e grosso ele me perguntou:

– Viu que todos os seus poemas agora estão na Internet?

Tremi na base, eu que guardava a sete chaves e há décadas minhas obras completas. Os poemas estavam todos dentro de um baú azul-marinho no canto da sala em páginas amareladas, quase puidas do Suplemento Literário do Minas Gerais. Por alguns segundos senti-me um John Lennon no dia em que o filho Sean, aos seis anos de idade, foi lanchar na casa de um amigo, viu o filme Yellow Submarine e voltou pra casa perguntando pro pai:

– Você era um Beatle?

Sempre tive medo de que minhas filhas chegassem em casa um dia e me perguntassem:

– Você era poeta?

Passado o susto inicial, cliquei no link que meu amigo enviou e cai direto na página do Suplemento. Ainda tremendo na base cliquei em “opções para pesquisa”, depois “palavra chave”, em seguida “diretrizes da pesquisa” e finalmente “iniciar pesquisa”. Foi ai que abriu na tela uma página inteira onde estava o meu primeiro poema publicado, Rasteiro, escrito no verão de 1977 num acampamento em Toledo, na Espanha.

Fui clicando um a um. Ex-minha, Paralelo, Enchente das goiabas, Ouro Preto, Shopping Center… estavam todos lá agora expostos à visitação pública. Parei num que dizia assim:

Do prego da sua cruz que te crucifiquei

Restou apenas a ferrugem

Da fumaça do seu cigarro que apaguei

A fuligem

Da nossa estrada

A miragem

Do nosso amor

Sacanagem

Fechei a quinta página e parei, desisti. Não queria mais ler aqueles poemas feitos a dez mil quilômetros de distância do meu país num tempo que ficou pra trás.

Tinha eu vinte e poucos anos de idade quando às vezes no meio da tarde cinzenta e fria, lá no quarto andar da Rue de la Roquette com vista pra Bastilha abria meu caderno Clairefontaine e escrevia poemas com uma caneta Sheaffer. Depois passava a limpo e enviava pelo correio para o Suplemento.

Quando jovem via poesia em tudo. Nos primeiros brotos que despontavam das árvores do Jardin de Luxembourg depois de um tenebroso inverno, na poça d’água congelada a caminho do Marais, na vitrine da boulangerie, na velhinha vendendo balas de goma na boca do metrô Odéon, nos pombos da Rue des Mauvais Garçons e até o cartaz do general Antônio Spínola estampado na capa da Le Point numa banca de jornal virava poema: Os cravos da revolução.

Andando por Paris procurava poesia também na minha Belo Horizonte que era só memória, um quadro dependurado na parede e que às vezes doía. A Belo Horizonte do sanduiche de pernil da Bosch, do Mate-Couro gelado da Padaria Savassi, da coxinha de catupiry da Torre Eiffel, do sorvete de jabuticaba de Seu Domingos, do milkshake de morango das Lojas Americanas.

Ia buscar poesia lá na Zona da Mata, na Cataguases distante que também era só memória. O cine Edgard, o leite batido do Mocambo, a Rua Major Vieira onde morava Teresa, o grito de carnaval no Clube Social, o Hotel Villas, a chácara de Dona Catarina, os filmes de Humberto Mauro, a banca de jornais dos irmãos Reis.

Hoje o sonho acabou, não procuro mais poesia em lugar algum. E se procuro tenho sempre a sensação de que não vou achar.

No próximo fim de semana vou abrir o baú azul marinho, sentir aquele cheiro de mofo e tirar dali todas as páginas do Suplemento Literário do Minas Gerais porque não preciso mais escondê-las nem guardá-las. Sei que vou encontrar também ali dentro meus primeiros contos, minhas crônicas apaixonadas publicadas no Caderno 2 do Estadão e os meus cartuns. Sim, já fui cartunista do jornal O Vapor que, felizmente, ainda não está disponível na Internet. Que eu saiba não.

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