Cultura
Um passeio pela excentricidade
Silvina Ocampo, autora argentina redescoberta no Brasil, é retratada de forma original na biografia A Irmã Menor


A argentina Mariana Enriquez, autora do premiado romance Nossa Parte da Noite, de 2019, testa seus talentos também na biografia em A Irmã Menor: Um Retrato de Silvina Ocampo, publicado em 2014 e agora lançado no Brasil. O livro de Mariana faz parte de uma sorte de descoberta editorial de Silvina Ocampo no Brasil. Em anos recentes, dois de seus volumes de contos foram publicados no País: A Fúria (Companhia das Letras, 2019) e As Convidadas (Companhia das Letras, 2022).
Caçula de seis irmãs, nascida em uma família de muitas posses, Silvina Ocampo (1903-1990) percorre o século XX como uma figura de destaque na cultura argentina. Foi casada com Adolfo Bioy Casares e manteve uma amizade de décadas com Jorge Luis Borges. Foi também próxima de escritores das gerações seguintes, como Alejandra Pizarnik, Edgardo Cozarinsky e Manuel Puig.
A Irmã Menor: Um Retrato de Silvina Ocampo. Mariana Enriquez. Tradução: Mariana Sanchez. Relicário (244 págs., 58,90 reais)
Em sua ficção excêntrica e atípica “predominam as vozes femininas”, escreve Mariana: “Costureiras, chapeleiras, empregadas; em geral, mulheres que trabalham com as mãos, cuja linguagem, infestada de estereótipos e clichês, reverbera em ambientes enfeitados com babados de plástico, colchas cor-de-rosa e imagens religiosas”.
A jornada de Mariana, contudo, dá conta de muitos outros elementos, para além da literatura. O “retrato” de Silvina Ocampo contém seus hábitos alimentares, as idiossincrasias de suas relações familiares, seu medo de viagens aéreas, a peculiar falta de cuidado com a manutenção de seus apartamentos, o amor pelos cachorros, a intensidade de suas relações epistolares e a gargantilha que não tirava nem para tomar banho.
A Irmã Menor é estruturado de forma eficiente e inteligente. O fluxo narrativo é envolvente, organizado com capítulos curtos, que, de quando em quando, apresentam saltos temporais sutis – úteis para o comentário sobre zonas biográficas, como a infância, que têm repercussões ao longo de toda uma trajetória. A biógrafa apresenta as particularidades dos momentos de publicação de todas as obras de Silvina, desde Viaje Olvidado (1937) até Y Así Sucessivamente (1987), calculando com elegância a medida de interferência mútua entre texto e contexto.
Um dos traços marcantes da escritora retratada é sua atenção às vozes ao redor. Suas histórias são, nas palavras de Mariana Enriquez, contos de ouvido absoluto. “É que Silvina Ocampo, ao contrário de Borges e Bioy, e mais próxima de Cortázar e Manuel Puig, incorporava em seus contos a fala coloquial rio-platense”, escreve, assinalando seu pioneirismo na introdução do “jeito de falar na literatura”.
Em A Irmã Menor, Mariana apropria-se dessa característica e compõe sua narrativa com o auxílio de várias vozes alheias – de testemunhos de quem conviveu com Silvina a citações de trabalhos sobre a obra. Entre outros, ela entrevista Oscar Giménez, engraxate de Bioy Casares (“ainda é o engraxate do La Biela, o mítico bar em frente ao cemitério da Recoleta”), Ernesto Montequin, que cuida dos originais inéditos de Silvina (entre eles, “um tesouro”: o epistolário entre Silvina e Bioy), e Ernesto Schoo, “um dos melhores amigos de Silvina nos anos 50, se não o melhor”.
Testemunhos, citações, anedotas e análises. O elenco das partes não faz jus ao todo que Mariana Enriquez consegue apresentar. Trata-se de um livro que funciona tanto para aqueles familiarizados com a literatura latino-americana do século XX quanto para aqueles que nunca ouviram falar de Silvina Ocampo. Independentemente de onde venha, o leitor terá uma experiência rara: a celebração de uma imaginação selvagem. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
Em Despertemos (Bertrand Brasil, 80 págs., 44,90 reais), o filósofo Edgar Morin debruça-se sobre a coexistência de duas Franças, a humanista e a reacionária, para fazer um clamor: que embarquemos em um projeto coletivo capaz de “despertar as mentes acabrunhadas ou resignadas”.
“Sonha-se muito na praia”, escreve Alan Pauls na abertura de A Vida Descalço (Companhia das Letras, 104 págs., 64,90 reais). A areia, as ondas e a vaguidão dos pensamentos sob o guarda-sol são a matéria-prima deste conciso ensaio já definido também como romance de formação.
Dalton de Paula: O Sequestrador de Almas (Cobogó, 248 págs., 150 reais), que traz reproduzidos os corpos e o imaginário retratados por Dalton, acompanhados de textos do artista e de Lilia Schwarcz, é uma peça preciosa para
processo de descolonização da arte.
Publicado na edição n° 1252 de CartaCapital, em 29 de março de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um passeio pela excentricidade’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.