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Um narrador desconfiado de si

Solenoide, segundo livro de Mircea Cărtărescu publicado no Brasil, revela a real dimensão do autor romeno

Um narrador desconfiado de si
Um narrador desconfiado de si
Bucareste em forma de ficção. Poeta, escritor e ensaísta, Cărtărescu é presença frequente nas listas de cotados para o Prêmio Nobel de Literatura – Imagem: Sandra Corsare e iStockphoto
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Um professor de escola pública da periferia de Bucareste, na Romênia, escreve um manuscrito no qual relata seu cotidiano tão trivial quanto fantástico. Não se trata de um projeto literário, ele alerta; os cadernos preenchidos com ardor e diligência trazem uma escrita que, por se manter alheia à literatura e amarrada à vida, encontra-se condenada de antemão.

Como narrador, ele está genuinamente interessado na investigação do próprio corpo e de sua mente, examinando desde as protuberâncias estranhas de seu umbigo até os sonhos mais vívidos e angustiantes. Por isso, inicia o relato com o registro de uma nova infestação de piolhos – algo costumeiro desde que começou a lecionar –, enquanto rememora anedotas da infância pobre, vivida nos bairros proletários da cidade.

Este seria um resumo possível para Solenoide, o portentoso romance do romeno Mircea Cărtărescu publicado no Brasil pela Mundaréu. Qualquer tentativa de síntese dessa obra resulta, porém, insuficiente ou inadequada.

Isso acontece por se tratar de um empreendimento ficcional de fôlego, que combina uma consciência narrativa aguçada, um texto elegante e a exímia habilidade de provocar estranhamento no leitor, fazendo-o partilhar do assombro que acomete o protagonista diante das irrupções do extraordinário em seu cotidiano ou dos eventos inexplicáveis de seu passado.

Poeta, escritor e ensaísta celebrado tanto na Romênia quanto no cenário literário internacional, Cărtărescu é presença frequente nas listas de cotados para o Prêmio Nobel de Literatura. ­Solenoide, escrito em 2015, é o segundo livro do autor publicado em português.

Em 2018, a mesma Mundaréu trouxe Nostalgia (416 págs., 76 reais), romance de 1989 composto de cinco relatos aparentemente autônomos. Os textos têm nas reminiscências da infância, no insólito e na reflexão sobre a própria criação ficcional os principais pilares narrativos. Lá estão os personagens inusitados, como o Roletista e o Mendébil, o universo onírico que contamina a realidade e os comentários ácidos sobre o ato de escrever.

Em Solenoide, esses elementos são intensificados. Além disso, o narrador luta constantemente contra a ideia das convenções literárias. Ele está certo de que poderia ter sido um autor famoso, caso seu primeiro “escrito fundamental” – o poema A Queda – não tivesse sido veementemente rechaçado em um sarau universitário. O fracasso inicial abortou uma trajetória artística talvez exitosa, mas liberou o protagonista para explorar livremente a linguagem.

Afinal, qual é a matéria-prima do romance? De onde vem o impulso inventivo? Quanto há de engajamento do corpo na criação artística? Essas perguntas perpassam as quase 800 páginas do livro, entrelaçando-se às inquietações do protagonista sobre a morte, tema incontornável na experiência humana.

Solenoide. Mircea Cărtărescu. Tradução: Fernando Klabin. Mundaréu (784 págs., 146 reais) – Compre na Amazon

Em seu manuscrito, o narrador persegue os sentidos e mistérios da existência. Daí seu intento de atravessar a opacidade do cotidiano e compreender o que constitui uma vida para além da epiderme da realidade. O leitor torna-se, então, testemunha do alucinante mundo oculto sob o véu da “normalidade”. A começar dos eventos que ocorrem na casa em forma de navio, na qual mora o protagonista, construída sobre um solenoide – que é uma bobina indutora de campo eletromagnético.

O dispositivo, no interior da narrativa, é aquilo que gera os acontecimentos extraordinários. Além do solenoide da casa do protagonista, há outros cinco espalhados pelos subterrâneos de Bucareste.

A capital da Romênia é, aliás, personagem fundamental da narrativa – como também acontecia em Nostalgia. “Meu mundo é Bucareste, a cidade mais triste da face da terra, mas, ao mesmo tempo, a única de verdade”, escreve o protagonista. “O lendário arquiteto da cidade perguntou-se como poderia uma aglomeração urbana refletir melhor, mais verdadeira e mais profundamente o terrível destino da humanidade, a grandiosa e desesperançada tragédia de nossa estirpe.”

Na cartografia que configura o romance (ou “antirromance”, como insiste o narrador), estão lugares emprestados da memória do próprio autor. O presente da história remete à Bucareste dos anos 1980, uma metrópole em ruínas, moldada pela escassez de produtos e pela precariedade dos serviços.

Embora apareça de modo sutil, o contexto político – marcado pela ditatura de Nicolae Ceaușescu, que governou a Romênia de 1965 a 1989 – é importante para a compreensão da proposta de ruptura com um realismo monolítico e hegemônico. Surgem, em seu lugar, as múltiplas dimensões possíveis da vida e da história. O próprio narrador parece desdobrar-se em outros: o gêmeo misterioso, sua versão feminina, um ácaro messiânico etc.

A leitura de Solenoide pode não ser reconfortante, mas é, por outro lado, recompensadora. Cabe destacar o esmero na tradução do romeno de Fernando Klabin,­ que capta, com precisão, a sobriedade ora irônica, ora melancólica do texto.

Em tempos de excessiva literalidade e certo desdém pela imaginação, Cărtărescu vai no caminho oposto ao criar uma aventura ficcional exuberante que abarca os muitos ângulos da experiência humana e vislumbra algum sentido, não sem perplexidade, para o fato de existirmos. •

Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um narrador desconfiado de si’

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