Cultura
Um mundo que se abre à beira da praia
Sem Coração, filmado em alagoas, retrata de forma autêntica e delicada o rito de passagem da adolescência
Dois anos se passaram desde a realização do curta-metragem Sem Coração, selecionado para Cannes e muito aplaudido no Festival de Brasília, em 2014, quando Nara Normande, alagoana, e Tião, pernambucano, decidiram recontar aquela história em um longa-metragem.
Nara conta que, desde o curta, ela e Tião mantiveram uma relação com os atores do filme – Eduarda Samara, a menina chamada de sem coração, por ter uma cicatriz no peito, e Alaylson Emanuel, o Galego – e que, de alguma forma, aquele universo, muito vinculado a suas memórias, seguia a alimentá-los.
O início do projeto coincidiu, porém, com o impeachment de Dilma Rousseff e o início da crise institucional do cinema brasileiro. “A gente, simplesmente, não conseguia recursos aqui”, conta Tião.
Produzido pela Cinemascópio, de Emilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho – que ergueram a faixa contra o golpe, em Cannes, ao exibir Aquarius –, Sem Coração, segundo Tião, foi especialmente atingido pela paralisia do fomento.
“Chegamos a entrar na Justiça para ter a liberação de recursos, mas, no fim, o que nos permitiu fazer o filme foi um edital de Pernambuco e um prêmio do CNC”, diz, referindo-se ao concorrido programa Aide Aux Cinémas du Monde (Ajuda aos Cinemas do Mundo), do Centro Nacional de Cinematografia da França. O projeto foi selecionado ainda para um prestigiado laboratório internacional, o Torino Film Lab, e conseguiu apoio da emissora italiana RAI.
Desse longo percurso, marcado pelo diálogo com diferentes parceiros, saiu um projeto autêntico e delicado que se destaca no todo da produção brasileira. Não por acaso, foi selecionado para participar do Festival de Veneza, em 2023.
A narrativa se desenrola pelo olhar de Tamara (Maya de Vicq), uma menina que se descobre apaixonada no mesmo momento em que se prepara para sair do pequeno lugar onde nasceu, numa praia de Alagoas, para fazer faculdade. Tanto filme de turma quanto de passagem – da adolescência para a vida adulta –, Sem Coração extrai sua autenticidade da forma como a dupla de diretores insere a história num lugar e num modo de vida muito particulares e, por vezes, etéreos.
“Eu, quando tinha 13 anos, saí da praia para ir morar no Recife, e essa personagem da Tamara, que surgiu em outro curta meu, uma animação em areia, Guaxuma, me pareceu a personagem que faltava para o longa não repetir o curta”, conta Nara, que hoje vive em São Paulo, longe do mar, mas mantém, em sua criação, a paisagem afetiva e geográfica que a constituiu. •
Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um mundo que se abre à beira da praia’
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