Cultura
Um melodrama exemplar
Romance ganhador do Prêmio Strega acompanha a contraditória vida de um médico italiano


Sandro Veronesi é um escritor que constrói suas narrativas sem que percebamos os fios por ele mexidos. Quando o leitor se dá conta, um tsunami emocional já tomou conta do livro e de quem o lê. É assim também em O Colibri, recém-lançado no Brasil.
O colibri do título é o protagonista Marco Carrera, um oftalmologista que, quando criança, ganhou esse apelido por ser muito miúdo – depois, ele passaria por um tratamento revolucionário que aumentaria sua estatura. É ele o centro da narrativa que percorre passado, presente e futuro.
Casado com Marina, uma mulher infiel que acaba enlouquecendo, ele ama mesmo é sua namorada de juventude, Luisa, filha dos vizinhos, com quem seus pais eram brigados. Eles tiveram um romance conturbado e, no momento em que a história se passa, os dois, adultos, trocam cartas e e-mails e têm eventuais encontros em Paris, onde ela mora.
Os pais do protagonista são outras figuras de peso. A história deles é contada, de forma fragmentada, desde quando Marco, seu irmão e sua irmã eram pequenos, até o momento em que o casal morreu, de câncer, com pouco tempo de diferença.
O Colibri – Sandro Veronesi. Tradução: Karina Jannini. Autêntica Contemporânea. (336 págs., 74,90 reais) – Compre na Amazon
Há também sua filha, a quem ama irrestritamente, e que morre em um acidente fatal. Resta a ele então a netinha, considerada um pequeno milagre, “o homem do futuro” – sim, o homem do futuro é uma mulher.
A saga é contada de forma quase barroca, que não deixa claro, por exemplo, o tempo no qual a narrativa se passa. Alguns fatos são anunciados de passagem para, apenas mais adiante, serem narrados detalhadamente. Veronesi cria, com esse jogo, uma teia de relacionamentos entre personagens cujas vidas – com suas inevitáveis complexidades e contradições – nos são apresentadas aos poucos.
Outro personagem marcante, embora discreto, é Daniele Carradori, ex-psicanalista de Marina, com quem Marco acaba travando uma amizade inusitada ao longo dos anos. O relacionamento deles tem ares fraternos, e o analista funciona quase como a consciência do protagonista, fazendo-o ver coisas que, sozinho, ele provavelmente não enxergaria.
Ganhador duas vezes do Prêmio Strega – por esse romance e por Caos Calmo, de 2005 – Veronesi é um dos principais nomes da literatura contemporânea de seu país. O viés humanista de seus livros eleva o melodrama a outro patamar. •
Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um melodrama exemplar’
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