Cultura
Um manifesto íntimo e raivoso
Em Como Enfrentar um Ditador, Maria Ressa, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz, reflete sobre seus enfrentamentos contra o regime filipino


A filipino-americana Maria Ressa pode ser, fisicamente, uma figura diminuta. Tem, descalça, 1,55 metro. É, no entanto, uma gigante moral. Em 2021, ela foi um dos dois jornalistas – o outro foi o russo Dmitry Muratov – a receber o Prêmio Nobel da Paz por seus esforços para “salvaguardar a liberdade de expressão” em seus respectivos países.
Maria se soma, assim, a dois outros jornalistas de um seleto panteão de vencedores anteriores: a iemenita Tawakkol Karman, que dividiu o prêmio com duas mulheres em 2011, e o repórter alemão Carl Ossietzky, homenageado em 1935 por sua reportagem sobre o rearmamento alemão sob Hitler.
Ossietzky não pôde receber o prêmio porque o regime lhe recusou a permissão para viajar à Noruega. Ele morreu em 1938, após suportar anos de tortura e maus-tratos em campos de concentração nazistas.
Maria Ressa recebeu o prêmio por suas reportagens destemidas sobre a corrupção e a brutalidade do regime de Rodrigo Duterte em sua terra natal, as Filipinas. Se o presidente daquele infeliz país tivesse campos de concentração à sua disposição, ela, com certeza, estaria em um deles.
À falta de campos de concentração, o regime teve de se contentar em condená-la por um crime que não cometeu, com base em um artigo que não escreveu, sob um crime de “ciberlibelo” que ainda não existia e emitir dez mandados de prisão.
Seu advogado lhe disse que, se for considerada culpada nesses processos, poderá ser condenada a mais de um século de prisão. Desde 2018, Ressa, quando está na rua, está sempre com um colete à prova de balas.
No livro Como Enfrentar um Ditador – A Luta Pelo Nosso Futuro (agora lançado no Brasil, pela Companhia das Letras), o que ela faz é parte autobiografia, parte manifesto.
O manifesto é sobre o quão importante é para a democracia o jornalismo que denuncia abusos de poder e desafia a impunidade daqueles que – como Duterte e Mark Zuckerberg, o chefe do Facebook – o exercem.
A biografia é a história de como uma menina nascida em circunstâncias modestas nas Filipinas foi levada para os Estados Unidos, onde prosperou. No país, ela terminou indo para Princeton, escrevendo uma peça de advertência que chegou ao Festival Fringe de Edimburgo e ganhando uma bolsa Fulbright, que a levou de volta à terra natal com a ideia de explorar o papel do teatro político na condução da mudança política.
COMO ENFRENTAR UM DITADOR. Maria Ressa. Tradução: Débora Landsberg, Denise Bottmann e Isa Mara Lando. Companhia das Letras (344 págs., 74,90 reais)
Maria Ressa tornou-se jornalista mais ou menos por acaso. Trabalhou, primeiro, nos bastidores de uma emissora de tevê local, a PTV4, depois no programa de documentários investigativos Probe, da ABS-CBN, e, finalmente, na CNN, onde descobriu que “aparecer diante da câmera é a maneira mais antinatural de ser natural”.
Ela revelou-se, porém, uma repórter natural e destemida que queria estar no centro das coisas, mesmo quando essas coisas eram indescritivelmente brutais, como na Indonésia após a queda de Suharto, em 1998.
“Em um fim de semana, vi oito pessoas decapitadas por grupos de homens barulhentos e animados, usando faixas coloridas na cabeça que designavam seu grupo étnico”, escreveu. “Saí para um campo onde havia um grupo de meninos jogando futebol. Eles pareciam estar se divertindo muito. Então percebi que a bola que eles chutavam era a cabeça de um velho.”
No final, ela deixou a CNN por princípio: discordou da contratação de um apresentador em quem não confiava. Com outras três mulheres, fundou o Rappler, site espetacularmente original, apenas digital, que rapidamente caiu na mira do regime de Duterte pela forma como começou a investigar os assassinatos que faziam parte da “guerra ao crime” do presidente.
“Todas as noites, desde a eleição de 2016, uma média de 33 cadáveres foram encontrados nas ruas e nos bairros pobres de Manila”, escreve. O Rappler começou a publicar perfis de pessoas que tinham sido assassinadas, muitas delas adolescentes ou crianças, e a publicar detalhes das “investigações” policiais sobre os assassinatos. O resto, como dizem, é história.
Foi nesse ponto que Maria Ressa começou a avaliar o papel crítico que as redes sociais, especialmente o Facebook, estavam desempenhando no enfraquecimento da democracia em seu país.
Duterte foi o primeiro político filipino a entender o potencial da plataforma e usá-la para seus próprios objetivos políticos. Sua equipe também provou ser particularmente hábil em explorar os algoritmos de engajamento para mobilizar multidões online e espalhar desinformação.
O Rappler começou a examinar como isso funcionava, e então Ressa se aproximou de executivos do Facebook em Cingapura para alertá-los sobre o que ela e seus colegas estavam descobrindo.
Mais tarde, encontrou-se com o próprio Zuckerberg para tentar fazê-lo dar mais atenção ao que estava acontecendo. Ao final, o Rappler descobriu que as Filipinas estavam sendo usadas como laboratório para a manipulação de plataformas online que facilitaram a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos.
Essas tentativas de dar o alarme não levaram, porém, a nada. Não causa, portanto, surpresa o fato de Como Enfrentar um Ditador ter um tom apaixonado, frustrado e, às vezes, raivoso.
Maria Ressa viu o futuro e sabia que ele não funcionava para a democracia. E ninguém, exceto o comitê do Nobel, parecia estar prestando atenção. Por essa graça, muito obrigado. •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1246 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE FEVEREIRO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um manifesto íntimo e raivoso “
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.