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Um laboratório da desesperança

Para Paulo Arantes, o Brasil tornou-se o espelho pelo qual os países centrais passam a ver seu próprio futuro

Um laboratório da desesperança
Um laboratório da desesperança
O autor olha de forma original para a periferia do capitalismo – Imagem: iStockphoto
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Paulo Arantes é um dos mais criativos intelectuais brasileiros em atividade. Professor, crítico, ensaísta e interlocutor generoso, ele fez da reflexão sobre a vida social e ideológica sua bússola existencial. Estamos diante, em suma, de um “intelectual total”.

Mas essa ambição universal não se rea­lizou num tempo/espaço qualquer. Ela só ganhou tração quando Arantes se deparou – instigado pelo amigo Roberto Schwarz – com o problema intelectual que nunca mais o deixaria: o do funcionamento do mundo das ideias na periferia do capitalismo.

Desde então, já como professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), mapeou, nos ensaios depois reunidos em Ressentimento da Dialética (1996), a emergência periférica da dialética moderna na Alemanha do século XIX, cuja intelectualidade se ressentia do “atraso” do país em relação à Inglaterra ou à França. No mesmo passo, definiu alguns dos dilemas da intelligentsia brasileira em livros como Sentimento da Dialética (1992) ou O Fio da Meada (1996).

Foi a partir dessa janela periférica que, na virada para o século XXI, Arantes ampliou o alcance de suas preocupações intelectuais na direção do centro do sistema. E foi com essa perspectiva alargada que escreveu o audacioso ensaio A Fratura Brasileira do Mundo – Visões do Laboratório Brasileiro da Mundialização, publicado pela primeira vez em 2001, em pleno governo FHC, e agora lançado em edição própria, acrescido de um posfácio escrito pelo filósofo Marildo Menegat.

A Fratura Brasileira do Mundo. Visões do Laboratório Brasileiro da Mundialização. Paulo Arantes. Editora 34 (144 págs., 52 reais)

No contexto contemporâneo, dirá Arantes, a experiência da periferia do capitalismo revela-se pertinente não apenas por permitir a visualização no passado daquilo que, do centro, aparece como mero efeito colateral do progresso. No presente, sob a mundialização, são os próprios países centrais (como os EUA ou a França) que começam a se confrontar com problemas outrora restritos às nações ditas subdesenvolvidas.

É este o sentido da “fratura brasileira do mundo” arrolada no título. Quando o Brasil idealizado já não é mais o país do futuro, ele começa a ser apontado como o futuro de um mundo igualmente sem esperanças. É quando a exceção, enfim, vai se tornando a norma.

Paradoxalmente, é justamente por sermos “um laboratório e tanto do famigerado desenvolvimento desigual e combinado” do “progresso” capitalista que estamos bem posicionados para elaborar um novo pensamento crítico com implicações globais. O futuro, nesse sentido, é aqui.

A própria trajetória de Paulo Arantes, após a publicação de A Fratura Brasileira do Mundo, alimenta-se dessa “atualidade da periferia”, como se vê em livros como Extinção (2005) e O Novo Tempo do Mundo (2014). A crítica torna-se global porque é (e não apesar de ser) periférica.

Seu pensamento já lhe rendeu variadas alcunhas depreciativas: “Intele­ctual do contra”, “Catastrofista”, ou “Zero à esquerda”, carapuça que tomou para si. O aparente desprezo sugere o incômodo com um tipo de intelectual que, por compreender criticamente o mundo do qual faz parte, pode ajudar a transformá-lo.

É esse intelectual sem concessões que indispõe os defensores de uma política “realista”, o que só acaba por atestar, por contraste, a sua importância e atualidade. “Apocalíptico”, talvez. “Integrado”, jamais. •


*Fabio Mascaro Querido é professor de Sociologia da Unicamp.

VITRINE

Por Ana Paula Sousa

O título do novo trabalho do historiador britânico Peter Burke é autoexplicativo: Ignorância: Uma História ­Global ­(Vestígio, 352 págs., 74,90 reais). Na obra, Burke procura mostrar como a ignorância pode ser colocada a serviço do poder e da perpetuação de preconceitos.

Conhecida, sobretudo, por sua produção ensaística, a norte-americana Vivian Gornick dá seguimento, em Uma ­Mulher Singular (Todavia, 144 págs., 64,90 ­reais), ao percurso memorialístico aberto por Afetos Ferozes, eleito, pelo New York Times, como o melhor livro de memórias do último meio século.

É para si mesmo, e para a saga de sua família, que Miguel Sanches Neto se volta em Inventar Um Avô (Maralto, 157 págs., 44,90 reais). A narrativa, além de desvelar os afetos e vazios do próprio autor, traça parte da história da imigração espanhola para o Brasil.

Publicado na edição n° 1263 de CartaCapital, em 14 de junho de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um laboratório da desesperança’

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