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Um gênio por ele mesmo

Em Miles Davis – A Autobiografia, o artista norte-americano expõe seu olhar nada afável sobre o mundo, seus vícios e sua relação visceral com o trompete e o jazz

“Mudei a história da música umas cinco ou seis vezes” - Imagem: Gérard Landau/Ina/AFP
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Em 1974, Miles Davis estava hospedado em um hotel, em São Paulo, quando achou que havia algo de muito errado com sua saúde. Também, pudera: ele abusou da vodca, fumou maconha (“Disseram que era da boa”, justificou) e usou cocaína e analgésicos. Davis ligou para a recepção e, rapidamente, foi visitado por uma equipe de socorro que colocou cateteres em seu nariz e acessos para medicamento em suas veias.

A apresentação que faria foi adiada para o dia seguinte. E ele, como sempre, tocou tão bem que deixou a plateia em êxtase. “E eu me diverti horrores com aquelas mulheres maravilhosas do Brasil. Elas não saíam de cima de mim e eram ótimas na cama, adoravam fazer amor”, relembra o artista no recém-lançado ­Miles Davis – A Autobiografia.

O livro é uma compilação de conversas que o trompetista norte-americano teve com o jornalista e poeta Quincy Troupe e impressiona pelo estilo direto e pelos comentários, por vezes desrespeitosos, sobre amigos e companheiros de profissão. Davis, que teria completado 96 anos no dia 26 de maio, de fato nunca se preocupou em ser uma pessoa agradável ou um músico afável. Mas seu desejo de subverter as regras o transformou em um dos maiores de todos os tempos.

MILES DAVIS – A AUTOBIOGRAFIA. Miles Davis e Quincy Troupe. Tradução: Paulo Alves. Belas Letras (576 págs., 99 reais)

“Mudei a história da música umas cinco ou seis vezes”, disparou certa vez para a mulher de um político que, em um jantar na Casa Branca, perguntou o que o trompetista tinha feito de importante. Nascido em St. Clair County, no estado de Illinois, ele criou, no fim dos anos 1940, o cool jazz, uma vertente mais suave do gênero americano.

Em 1959, lançaria Kind of Blue, um álbum em que demonstrou toda a sua capacidade de improvisação e no qual fundiu o jazz a estilos como o rock, o funk e até o hip-hop, que, nos anos 1980, dava os primeiros passos. Davis revelou tantos músicos que a menção a eles implicaria uma lista exaustiva. O respeito de que goza entre seus protegidos é eterno. “Sempre busquei aprovação de Miles quando lançava um disco novo. Se ele ficasse feliz, era sinal de que eu estava no caminho certo”, disse o pianista Herbie Hancock.

Sua origem contrasta com a de seus contemporâneos. Filho de um dentista e de uma pianista e violinista, Miles Dewie Davis III teve um padrão de vida confortável. O que não quer dizer uma existência tranquila. Seu avô, por exemplo, apregoava que nunca se devia confiar em ninguém nas questões financeiras. Reza a lenda que o relacionamento conturbado entre seus pais contribuiu para o desenvolvimento de sua aptidão. Ele era incentivado pelo pai a tocar trompete porque a mãe detestava o som do instrumento.

Em sua autobiografia, Miles Davis relata que a paixão pela música foi despertada em 1944, quando assistiu a uma apresentação da orquestra de Billy Eckstine, que trazia em sua formação o trompetista ­Dizzy Gillespie e o saxofonista Charlie ­Parker. Nesse mesmo ano, ele passaria a integrar o grupo por um curto período, para cobrir o trompetista titular, que adoeceu.

Essa oportunidade o incentivou a se mudar para Nova York e estudar na prestigiada Juilliard School. Mas logo desistiu. Ele dizia aprender mais nas noitadas musicais do que nas aulas. Foi, contudo, um estudioso: a Biblioteca de Nova York possui em seu acervo anotações que o trompetista fazia em cópias de partituras de Igor Stravinsky e Béla Bartók.

Em uma viagem ao Brasil, nos anos 1970, aprontou tanto que teve de cancelar uma apresentação

Miles Davis sempre acreditou no potencial comercial do jazz e, no fim dos anos 1960, se apresentou em locais como Fillmore, o templo do rock daquele período. Ele também aceitou a sugestão de Clive Davis, então presidente da CBS, de eletrificar o seu som.

No livro, os companheiros de profissão são exaltados em seus talentos, mas, muitas vezes, têm também seus defeitos exacerbados. Ele diz, por exemplo, que o saxofonista Charlie Parker era genial, mas um junkie pouco confiável. Certa vez, ­Davis teve de ameaçá-lo com uma garrafa quebrada para que fosse pago pela apresentação da noite. John Coltrane foi socado porque, entorpecido pela heroína, cochilou durante uma performance. O pianista Bill Evans, que apresentou a Davis o trabalho de compositores como Aram Khachaturiam, é injustamente classificado como “um pianistazinho”.

O maestro canadense Gil Evans é um dos que escapam do azedume: “De todas as pessoas com quem toquei, é uma das únicas que conseguiam acompanhar meu pensamento musical”, afirmou. Os comentários de Davis sobre as mulheres também não são nada lisonjeiros. Em seus três casamentos, o artista colecionou casos extraconjugais.

Outro tema que emerge das conversas é o racismo. Davis relata que o avô foi expulso do terreno que possuía no Arkansas por um grupo de fazendeiros brancos. E o próprio trompetista envolveu-se num episódio de intolerância racial. Em 1957, estava na porta do clube de jazz Birdland, em Nova York, quando foi insultado por um policial. Davis reagiu, com agressões verbais, e acabou sofrendo golpes de cassetete.

O epílogo de Miles Davis – A Autobiografia traz considerações sobre o futuro da música. Para ele, o futuro apontava para autores africanos – entre eles Fela Kuti – e o cantor e produtor Prince. Adicto confesso, que passou maus bocados com a heroína, ele morreu no dia 28 de setembro de 1991, de AVC, pneumonia e insuficiência respiratória em Santa Monica, Califórnia. Como testamento, deixou discos que mudaram o rumo da música no século XX. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1217 DE CARTACAPITAL, EM 20 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um gênio por ele mesmo”

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