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Um épico em tom de conto de fadas

A partir de dois personagens ficcionais e de um olhar para a natureza, ‘O Pacto da Água’ relata 70 anos da história da Índia

Um épico em tom de conto de fadas
Um épico em tom de conto de fadas
Autor. Verghese, filho de indianos, nasceu na Etiópia e atuou como médico nos EUA – Imagem: Jason Henry
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“O lar da jovem noiva e do noivo viúvo fica em ­Travancore, no extremo sul da Índia, entre o Mar Arábico e os Gates Ocidentais (…). A terra é moldada pela água e um idioma comum une o povo ­dali: o malaiala.”

Assim adentramos ao mundo de O ­Pacto da Água, de Abraham Verghese. No ano de 1900, uma menina de 12 anos, ­Mariamma, pega um barco para se casar com um viúvo de 40. Mais tarde, ­Mariamma se tornará a Grande ­Ammachi, a matriarca da propriedade localizada na cidade de Parambil, em Kerala.

Ao longo de sete décadas, ela será o centro inabalável dessa terra e de sua comunidade. E descobrirá que existe uma maldição, uma “condição” ligada à família: um afogamento em cada geração. Ninguém consegue explicar a razão dessas mortes e todos rezam para que um médico encontre a cura para esse mal.

Paralelamente, corre outra história, a de Digby Kilgour, jovem doutor escocês que viaja de Glasgow a Madras para trabalhar no serviço médico indiano durante a época colonial. As duas histórias vão encontrar-se só perto do final do livro, “como um rio que liga as pessoas que vivem acima com as que estão abaixo”.

As narrativas a respeito dos dois protagonistas são entremeadas por fatos históricos: soldados indianos lutam pelos britânicos nas guerras mundiais; a Índia conquista a independência; chega o jornal, depois o rádio, depois uma agência de correio; o estado de Kerala é formado; os comunistas vencem as eleições; e a insurgência naxalita corre desenfreada.

O Pacto da Água. Abraham Verghese. Tradução: Odorico Leal. Companhia das Letras (632 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon

O primeiro – e básico – compromisso do romance é para com a terra e as vidas que ela sustenta: “Ele cai num sono tranquilo (…) e isso só pode acontecer (…) no solo de Parambil e na Terra de Deus” – como é conhecido o estado de Kerala.

Verghese nasceu na Etiópia, filho de um casal indiano de Kerala, e, no início da vida adulta, trabalhou como médico e professor de Medicina nos Estados Unidos.

Ele descreve com detalhes a natureza luxuriante – “uma fantasia infantil de riachos e canais, uma rede de lagos e lagoas, um labirinto de remansos e poços de lótus verde-escuros” –, os intrincados rituais da vida cotidiana – “ela espalha um pouco do iogurte que sobrou do leite daquele dia, cobre-o com um pano e coloca-o num lugar fresco” – e os rigores do estudo médico – “seis ensaios para julgar tudo o que aprendi em 13 mil horas”.

O romance de estreia de Verghese, O Décimo Primeiro Mandamento (Cutting for Stone), de 2009, foi amplamente elogiado e esteve na lista de best sellers do jornal New York Times por mais de dois anos. O Pacto da Água, publicado apenas 14 anos depois, e agora lançado no Brasil, tem as aspirações de um épico.

Trata-se de uma saga de nascimentos, mortes e tudo o mais acontecendo em ciclos. A trama gira em torno de catástrofes climáticas, doenças e acidentes, pontuando as dez partes do romance. Cada calamidade é trágica, fascinante e fundamental para a história.

Algumas cenas, como quando uma criança especial dança para anunciar as monções, ou a última noite da Grande Ammachi, que se movimenta sem parar pela casa, são comoventes e memoráveis.

O uso do presente para falar sobre o passado confere ao texto uma qualidade envolvente e universal, invocando a tradição indiana de contar histórias. O cristianismo fornece a espinha dorsal moral, e o orgulho do povo malaiala brilha em momentos importantes.

Entretanto, ao olhar para o passado a partir de um ângulo aberto, o livro encobre práticas problemáticas da época: a menina-noiva adapta-se sem esforço ao marido 30 anos mais velho, membros de casta alta e de casta baixa convivem como famílias, senhores coloniais e súditos são amigos, o revolucionário lamenta sua revolta e a independência apaga os males do colonialismo.

Os personagens têm temperamento quase bíblico. Eles são gentis, confiáveis e, às vezes, exibem uma consciência social que parece à frente de seu tempo. Os maus se redimem, os corruptos são infalivelmente punidos, o perdão é implorado e concedido, a dor é superada e as divergências são reconciliadas em questão de capítulos. A partir de certo ponto, essa sensação de bem-estar parece um pouco boa demais.

O largo alcance intergerações que torna este romance notável é também seu maior risco, dada a sua extensão. São mais de 600 páginas nas quais coerência e energia oscilam. A “condição” não é mencionada durante centenas de páginas; Digby desaparece por longos períodos; e a segunda parte perde em lirismo.

Dito isso, é inegável que O Pacto da Água é um livro importante por seu esforço para documentar tempos e lugares que a maioria dos leitores seria demasiado jovem para ter testemunhado. É também uma homenagem ao progresso científico que tornou a vida humana mais saudável e aos sacrifícios feitos pelas gerações anteriores. Como diz um dos personagens com a “condição”, “a viagem de descoberta não é sobre novos lugares, mas sobre ter um novo olhar”. •


 Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

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