Cultura
Um encontro entre soterrados
Às Vezes Acordo Tremendo, passado entre a Guatemala e o México, enlaça relato histórico e exercício ficcional


Durante a ditadura de Efraín Ríos Montt, na Guatemala, que durou de 23 de março de 1982 a 8 de agosto de 1983, cerca de 100 mil pessoas foram assassinadas ou desapareceram – entre elas, 2 mil maias ixil, representando 33% dessa etnia. Essas e outras informações são oferecidas pela escritora mexicana Ximena Santaolalla no fim do seu romance Às Vezes Acordo Tremendo, em uma nota que contém também a seguinte frase: “A cada dia morriam quase 200 vítimas, em um país que naquela época tinha, aproximadamente, 7,5 milhões de habitantes”.
Para dar conta desse conjunto de eventos extremos, a autora monta um romance heterogêneo, composto de histórias que correm paralelas, eventualmente se cruzando. Começamos com um soldado guatemalteco enviado pelo Exército para um treinamento no Texas – seu comandante, que sempre carrega um isqueiro, também terá uma linha narrativa. Continuamos com o relato de uma menina de 15 anos sequestrada pelos militares. Alcançamos, por fim, o presente da narrativa quando a empregada doméstica de um coronel testemunha diante de uma Comissão de Direitos Humanos.
São dois pontos principais de referência temporal – os anos de 1982 e 2012 –, e dois de referência espacial – a Cidade da Guatemala e a Cidade do México. Ximena fala da “fronteira ilusória” entre os dois países, que “entrelaça centenas de milhares de amores, amizades, desamores e crueldades”.
Às Vezes Acordo Tremendo. Ximena Santaolalla. Tradução: René Duarte. Editora Peabiru (282 págs., 59 reais) – Compre na Amazon
“Volto à cidade em que nasci”, diz Aura, uma das principais personagens do romance, e continua: “Ao abrir os olhos, meu primeiro impulso é o de me incendiar. Queimar este corpo que é a constante lembrança da minha história”. “Gavião não deixou de ser uma besta imunda”, diz Estrella, prima de um dos soldados, antes de acrescentar: “Um matador de merda, um criminoso. Aqui em Fort Hood, ele quase me afogou em um tambor cheio d’água. Mas eu sei ser paciente. Minha hora de devolver tudo a ele vai chegar”.
A progressão da narrativa ocorre em ziguezague, com futuro e passado mesclados, oscilando entre o geral e o particular, dando mergulhos na subjetividade dos personagens – que se expressam e assimilam os acontecimentos em suas trajetórias de formas diversas.
A violência é, evidentemente, um elemento de ligação e articulação das vidas retratadas. Ela não aparece, contudo, como uma força anônima e imutável, e sim como uma estratégia difusa de convivência e sobrevivência: cada personagem, do torturador à torturada, administra à sua maneira o evento violento e suas consequências, tanto físicas quanto mentais. “Aos poucos, estou percebendo meus erros (…) Caramba, há anos a culpa está crescendo dentro de mim, como se fosse um tumor nas costas. O peso me partiu”, afirma um dos soldados.
O livro de Ximena Santaolalla não é apenas uma lúcida e necessária denúncia dos massacres na Guatemala. É também – e sobretudo – uma peça narrativa muito bem desenvolvida, feita de partes e vozes que, pouco a pouco, vão se encaixando, criando um desenho que desafia o leitor tanto pelo viés estético quanto pelo viés ético.
A leitura é absorvente porque o trabalho de organização dos elementos foi rigoroso, longamente meditado. Ao mesmo tempo que informa e conscientiza, Às Vezes Acordo Tremendo propõe um exercício de vertiginosa coexistência de perspectivas e vivências – soterrados e privilegiados frente a frente, como qualquer dia em qualquer cidade do mundo. •
VITRINE
Por Ana Paula Sousa
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Nelson Freire, artista gigante, tem sua trajetória repassada na biografia Nelson Freire: O Segredo do Piano (DBA, 232 págs., 74,90 reais), de autoria do jornalista francês Olivier Bellamy, que também escreveu sobre Martha Argerich, parceira de teclado e de alma do pianista brasileiro.
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Em Ninguém É Normal (Arquipélago, 416 págs., 99,90 reais), Roy Richard Grinker, nascido em uma família de psiquiatras, mas tornado antropólogo, com doutorado em Harvard, percorre anos de história para explicar e demonstrar “como a cultura criou o estigma do transtorno normal”.
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É o Brasil de dentro ou, no dizer de Patativa do Assaré, o Brasil de baixo, que Celso Costa dá a ver em A Arte de Driblar Destinos (Fósforo, 288 págs., 84,90 reais). No romance, o autor descreve de modo sensorial a terra, as touradas e a pobreza de um mundo rural e quase mítico.
Publicado na edição n° 1307 de CartaCapital, em 24 de abril de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um encontro entre soterrados’
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