Cultura

Um dia, um autógrafo

Em nova crônica, o escritor Menaton Braff relembra o dia em que conheceu o ídolo Jorge Amado

Jorge Amado era um assombro constante, escreve Emiliano José. Foto: Governo da Bahia/Flickr
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Eu não sabia o que era ser adolescente, naquele tempo. E era um. Também não sabia que o Brasil era o país do carnaval nem onde ficava a Bahia, da qual sabia apenas o nome da capital, Salvador, e seu adjetivo gentílico – soteropolitano. Coisas que a escola nos obrigava a decorar e que o tempo vai preenchendo com significados. No já extinto Colégio Ruy Barbosa, de Porto Alegre, vivíamos de sonhos, cerveja e literatura. Foi o tempo em que me tornei frequentador assíduo da Livraria Globo, na rua da Praia. Sentava num dos corredores que havia entre as altas estantes de livros e lia orelhas e contracapas com zelo e método de um beneditino. Um dia, uma daquelas estantes me jogou nas mãos uma capa estranha, de Clóvis Graciano, e me fez ler uma orelha mais estranha ainda, falando de um Brasil diferente do meu (paradisíaco, naquela idade), enfim, dizendo umas coisas que a princípio me assustaram. Não consegui sair da livraria, naquela distante manhã, sem levar comigo O País do Carnaval, da Editora Martins.

Depois do primeiro, tive de ler todos. Com a voracidade de quem acaba de descobrir as cores do mundo. Eu estava tomado, confuso, assustado, perplexo. Mas então é assim, a gente pode escrever estas coisas todas, sobre gente com a nossa cara, sobre cidade com a cara da nossa, sobre um Brasil muito mais real do que aquele com que nos entopem nas escolas? Na medida em que devorava os livros de Jorge Amado, aumentava o deslumbramento, a paixão, que por fim explodiram numa certeza: – Eu vou ser escritor, foi o que disse quando um dia cheguei em casa. Ninguém riu, nem talvez tenha acreditado. Era tido então, senão até hoje, como um tipo meio desajustado, desses que não devem ser levados muito a sério.

Velho conhecido de Machado de Assis, José de Alencar, e outros autores do passado, aquele baiano ainda vivo que me deslumbrava me abriu as portas para Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outras paixões que fui tendo no correr da vida. Ele, o Jorge Amado, a quem tomei por segundo pai inteiramente à traição, jamais soube de minha existência.

Jamais talvez seja exagero. Um dia, um colega chegou ao Ruy com a notícia: O Jorge Amado acaba de desembarcar no aeroporto. Veio dar uma palestra no auditório da Rádio Farroupilha. Juntei da carteira o material, esperei a primeira troca de professores e, com cinco passos, estava pulando o muro. Naquele tempo eu tinha pernas com diversas habilidades que hoje só existem na memória.

Foi uma das grandes emoções de minha vida. Eu estava ali sentado (e me beliscava para ter certeza de que não era sonho) e lá, sobre o palco, um escritor de verdade, vivinho da silva como um ser humano. Enquanto ele dizia nóish, sotaque inteiramente desconhecido para um porto-alegrense, enquanto ele falava manso e mole, como ele falava, eu não conseguia conter a baba, que escorria dos dois lados.

No fim da palestra/entrevista, ele desceu do palco e veio pelo corredor, na direção em que eu estava. Quando se aproximou, não tive dúvida, saltei em sua frente com o livro de latim aberto e pedi um autógrafo. Foi a única vez em que tietei dessa maneira desavergonhada na vida. Foi o único autógrafo que o adolescente guardou por muitos anos. A vida me roubou o livro de latim, mas não me roubou o prazer de ter apertado a mão de meu ídolo. Nunca mais nos cruzamos.

Eu não sabia o que era ser adolescente, naquele tempo. E era um. Também não sabia que o Brasil era o país do carnaval nem onde ficava a Bahia, da qual sabia apenas o nome da capital, Salvador, e seu adjetivo gentílico – soteropolitano. Coisas que a escola nos obrigava a decorar e que o tempo vai preenchendo com significados. No já extinto Colégio Ruy Barbosa, de Porto Alegre, vivíamos de sonhos, cerveja e literatura. Foi o tempo em que me tornei frequentador assíduo da Livraria Globo, na rua da Praia. Sentava num dos corredores que havia entre as altas estantes de livros e lia orelhas e contracapas com zelo e método de um beneditino. Um dia, uma daquelas estantes me jogou nas mãos uma capa estranha, de Clóvis Graciano, e me fez ler uma orelha mais estranha ainda, falando de um Brasil diferente do meu (paradisíaco, naquela idade), enfim, dizendo umas coisas que a princípio me assustaram. Não consegui sair da livraria, naquela distante manhã, sem levar comigo O País do Carnaval, da Editora Martins.

Depois do primeiro, tive de ler todos. Com a voracidade de quem acaba de descobrir as cores do mundo. Eu estava tomado, confuso, assustado, perplexo. Mas então é assim, a gente pode escrever estas coisas todas, sobre gente com a nossa cara, sobre cidade com a cara da nossa, sobre um Brasil muito mais real do que aquele com que nos entopem nas escolas? Na medida em que devorava os livros de Jorge Amado, aumentava o deslumbramento, a paixão, que por fim explodiram numa certeza: – Eu vou ser escritor, foi o que disse quando um dia cheguei em casa. Ninguém riu, nem talvez tenha acreditado. Era tido então, senão até hoje, como um tipo meio desajustado, desses que não devem ser levados muito a sério.

Velho conhecido de Machado de Assis, José de Alencar, e outros autores do passado, aquele baiano ainda vivo que me deslumbrava me abriu as portas para Graciliano Ramos, José Lins do Rego e outras paixões que fui tendo no correr da vida. Ele, o Jorge Amado, a quem tomei por segundo pai inteiramente à traição, jamais soube de minha existência.

Jamais talvez seja exagero. Um dia, um colega chegou ao Ruy com a notícia: O Jorge Amado acaba de desembarcar no aeroporto. Veio dar uma palestra no auditório da Rádio Farroupilha. Juntei da carteira o material, esperei a primeira troca de professores e, com cinco passos, estava pulando o muro. Naquele tempo eu tinha pernas com diversas habilidades que hoje só existem na memória.

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