Cultura

Um dia com os dominicanos

No convento de La Tourette, obra de Le Corbusier, o torturado Frei Tito viveu seu último ano de martírio

Refúgio. Após sobreviver à tortura, o frade dominicano brasileiro buscou a paz nas montanhas francesas. Não a encontrou - Imagem: Leneide Duarte-Plon e reprodução
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Os dominicanos entraram em minha vida pela tragédia de Frei Tito de Alencar. Em 2011, num colóquio do Centro Primo Levi, em Paris, ao ouvir o psicanalista Jean-Claude Rolland analisar o “Caso Tito de Alencar”, resolvi propor uma entrevista para CartaCapital. Langage et Violence – Les Effets des Discours sur la Subjectivité d’une Époque (Linguagem e Violência – Os Efeitos dos Discursos na Subjetividade de uma Época) era o título da palestra. A conferência de Rolland, Soigner, Témoigner (Tratar, Testemunhar) era sobre o dominicano brasileiro, de quem ele tratara como psiquiatra, em Lyon, até 1974. “Tito vivia na certeza de que ia ser morto de um momento para o outro. Essa impressão deve ter sido o que ele viveu durante o tempo em que ficou preso e, principalmente, durante as sessões de tortura. Interiormente, ele vivia como um condenado à morte e o recurso ao suicídio tem como princípio a lógica: matar-se em vez de ser morto”, analisou.

Sua conferência me impressionou profundamente.

Pendurado numa árvore, Frei Tito enforcou-se em 1974, aos 28 anos, num campo em Villefranche-sur-Saône, não longe do convento Sainte-Marie de la ­Tourette onde viveu um ano. Ele trabalhava naquele verão numa fazenda a colher frutas.

O frade havia sido brutalmente torturado em São Paulo, em 1969, pelo delegado Sérgio Fleury e depois, em 1970, pelos militares na Operação Bandeirante.­ Escapou in extremis de uma tentativa de suicídio nos porões da tortura e viajou, em janeiro de 1971, para o exílio, como um dos 70 presos políticos trocados pelo embaixador suíço, sequestrado um mês antes pelos revolucionários.

O prédio, classificado como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, fica isolado no alto da colina, a 30 quilômetros de Lyon

“Por que você não faz um livro sobre Frei Tito?”

A pergunta do jornalista Alcino Leite Neto germinou e Um Homem Torturado – Nos Passos de Frei Tito de Alencar foi lançado em 2014 pela Civilização Brasileira, em coautoria com Clarisse Meireles, que convidei para essa viagem ao mundo da ditadura, dos sequestros de opositores políticos, da tortura, dos desaparecidos e das execuções sumárias. E das belas histórias, individuais e coletivas, de resistência ao regime, que instalara o terrorismo de Estado no Brasil.

Escrever a biografia de Frei Tito de Alencar Lima foi um desafio. Por se tratar de um personagem complexo, atormentado. Por se tratar de um religioso envolvido com um grupo de luta armada contra a ditadura, a Ação Libertadora Nacional, a quem os dominicanos davam apoio logístico. Pela morte trágica que o destino lhe reservou, pela importância que sua morte adquiriu, transformando-o em ícone e “mártir” da resistência à ditadura. E pelo momento político conturbado e violento no qual viveu.

No convento de La Tourette
Para falar de Frei Tito de Alencar Lima e do livro, publicado em 2020 na França com o título Tito de Alencar (1944-1974) – Un Dominicain Brésilien Martyr de la Dictature, passei 24 horas no convento de La ­Tourette, a convite do prior Frère Xavier Pollart.

O convento, da década de 1950, é um projeto do arquiteto Le Corbusier. Verdadeiro centro cultural, nele há debates, colóquios e exposições. O prédio, classificado como Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, fica isolado no alto da colina, a 30 quilômetros de Lyon. Uma das salas homenageia o dominicano brasileiro que viveu sua fé até as últimas consequências. Seu engajamento repousava no cristianismo da libertação, que prega a justiça social, o oposto da religião como “ópio do povo”.

Experiência. Pela primeira vez diante de uma plateia de dominicanos, vestidos com a tradicional batina branca – Imagem: Leneide Duarte-Plon

Revivi a emoção que senti em 2012 ao visitar pela primeira vez o convento, com Clarisse Meireles. Naquele ano, entrevistamos os dois frades que haviam conhecido Tito e fizemos a visita guiada do prédio e do cemitério, onde o brasileiro descansou de 1974 a 1983, quando seu corpo voltou à sua Fortaleza natal.

Na manhã do dia 25 de junho, fui recebida pelo ex-prior Frère Alain Durand na gare de L’Arbresle. Ao chegar ao convento fui levada pelo prior Xavier ao terceiro andar, onde me instalei na cela 96, ambiente austero, de estudo e de repouso: uma cama, uma escrivaninha, uma pia, um espelho e um armário sem portas. O voto de pobreza é levado a sério pelos dominicanos, a ordem dos pregadores. Da porta-janela da cela, que dá para uma varanda, abre-se a vista deslumbrante da floresta.

Ao meio-dia fomos para a igreja, austera e despojada, com um único ornamento, um crucifixo. A acústica da igreja é o ponto fraco do projeto do genial Corbusier. Além dos 59 dominicanos vindos para um encontro da ordem e para a palestra sobre Tito, havia umas seis pessoas, homens e mulheres, participando do ato litúrgico.

Após a missa, fomos almoçar no refeitório, iluminado pela transparência das paredes envidraçadas. Os dominicanos vinham de diversos conventos da França e um deles, de Israel, onde dirige a Escola Bíblica de Jerusalém.

No fim do almoço, acompanhado de um Beaujolais, alguns dominicanos foram caminhar nas trilhas, outros se retiraram para a sesta. O prefeito de Éveux e aqueles que o acompanhavam na missa voltaram para a cidade. Depois de repousar, dirigi-me à sala Thomas Morus para a apresentação do livro.

Tito vivia noite e dia como se ainda estivesse na sala de torturas em São Paulo. Até o momento final de libertação

Era a primeira vez que falava sobre Tito para um grupo exclusivo de dominicanos vestidos com a tradicional batina branca. O provincial Nicolas Tixier nos apresentou, Xavier Plassat, que falava do Brasil, e eu. Foi imensa a emoção de estar diante de pessoas tão próximas de Tito e, ao mesmo tempo, tão distantes de sua história, quase 50 anos depois de sua morte.

Plassat, o melhor amigo de Tito em seu último ano de vida, falou diretamente de Araguaína, onde coordena a Comissão Pastoral da Terra contra o trabalho escravo. Era visível sua emoção ao contar momentos dramáticos que viveu com Tito no La Tourette. Em 1973, depois do golpe de Augusto Pinochet no Chile, as ameaças do delegado Fleury se acentuaram nos delírios e alucinações de Tito.

No La Tourette, o jovem frade brasileiro viveu a solidão e o terror. Fora libertado da prisão da ditadura, mas trouxera os torturadores dentro da alma. No convento, encontrou o verde e o amarelo nas portas e frisos de Corbusier. Como fugir do Brasil, do qual saíra banido por decreto presidencial?

Tito vivia noite e dia como se ainda estivesse na sala de torturas em São Paulo. Até o momento final de libertação. Dia 10 de agosto de 1974, seu corpo foi encontrado por um camponês, pendurado numa árvore.

O filósofo Jean Améry, amigo de Primo Levi, escreveu: “Quem foi vítima de tortura torna-se incapaz de sentir-se em casa neste mundo. A afronta da aniquilação é indelével. A confiança que temos e que a tortura apaga é irrecuperável”. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1218 DE CARTACAPITAL, EM 27 DE JULHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um dia com os dominicanos”

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