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Um crime, uma menina e um país

Em Diorama, Carol Bensimon parte de um célebre assassinato para mostrar, de forma hábil e intimista, o ‘lodo’ do Brasil

Um crime, uma menina e um país
Um crime, uma menina e um país
A premiada autora vive hoje no meio da natureza, nos EUA - Imagem: Marco Antonio Filho
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Não são poucos, hoje, os filmes, séries e podcasts do gênero true crime a fazer sucesso. Os velhos crimes, nesse tipo de produção audiovisual, costumam ser recuperados com um viés investigativo e tendem a buscar o esclarecimento de detalhes que, no calor dos acontecimentos, ficaram nebulosos.

O ponto de partida do romance ficcional Diorama, de Carol Bensimon, é um desses crimes célebres e cheios de detalhes mirabolantes: o assassinato do ­deputado estadual gaúcho José Antônio Daudt, na entrada do prédio em que morava, em Porto Alegre, em 1988. O principal suspeito era outro deputado – médico e pai de família conservador.

Mas Carol, embora não abra mão do clima de suspense que nos mantém atados à trama, distancia sua narrativa dos códigos do gênero em voga. A literatura, no seu caso, é posta a serviço da investigação daquilo que não cabe nem à polícia nem à Justiça desvendar: a intimidade dos que não estão no centro do crime e os silêncios a recair não sobre fatos, mas sobre sentimentos.

A protagonista de Diorama é Cecília, a caçula dos três filhos do médico. “Eu queria contar a história a partir de um ponto de vista periférico. Às vezes, quando vejo alguém muito em evidência, penso no que estão vivendo os filhos daquela pessoa”, diz a autora.

DIORAMA. Carol Bensimon. Companhia das Letras (288 págs., 69,90 reais)

Quando a história nos é contada, Cecília é adulta e trabalha como taxidermista, empalhando animais, nos Estados Unidos. O relato começa, porém, antes, em 1987, em um ambiente com perdizes sendo caçadas, coleções de armas e uma masculinidade tóxica.

“No início, eu não tinha noção do quanto, ao falar do Brasil dos anos 1980, eu falaria de hoje”, diz Carol, da casa em que vive, em uma floresta de Mendocino, na Califórnia. “À medida que vi que isso estava acontecendo, quis tratar mais claramente do presente, tanto que coloco a mãe da Cecília votando em Bolsonaro.” O crime, dirá Cecília, revelava o “lodo” do País.

Na trama, presente e passado são habilmente entrecortados, ora para nos fornecer pistas, ora para acionar, nos personagens, memórias afetivas e sensações que nos ajudarão a compreender o contexto do crime. “Faltavam 21 anos para eu montar o meu primeiro animal – um esquilo com um molde pronto em um porão em Kooshia, Idaho –, mas apenas oito meses para que minha família estivesse nas manchetes de todos os jornais do Rio Grande do Sul”, lê-se, logo no começo.

Segundo Carol, a relação entre os animais-objeto expostos em museus e a morte do deputado progressista foi se revelando à medida que pesquisava os dois temas – sem que tivesse a intenção clara de colocá-los em uma mesma obra. Ela diz ter entendido ser possível essa junção conforme os paralelos simbólicos foram se dando a ver.

“A taxidermia passa pela tentativa de reconstrução de algo. As famílias são representadas nos dioramas com o papai urso e a mamãe urso, e isso não era assim na natureza”, reflete a escritora. “A gente cria uma narrativa sobre a natureza atravessada por ideias patriarcais, de dominação. Isso diz muito sobre a família tradicional brasileira.”

Carol, assim como Cecília, nasceu em Porto Alegre nos anos 1980 e vive nos Estados Unidos. A veracidade com a qual a personagem fala sobre colecionismo e ­ciência – seu livro preferido na infância era O Naturalista Amador – e revê detalhes do crime é tamanha que, lá pelas tantas, o texto remete à autoficção. Consciente disso, a autora gargalha: “Significa que ficou crível o suficiente para acharem que meu pai matou um deputado!”

Finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com seu primeiro romance, Sinuca Embaixo d’Água (2009) e vencedora do Jabuti com O Clube dos Jardineiros de Fumaça (2017), Carol Bensimon deixa evidente, em Diorama, por que é considerada uma das mais consistentes autoras brasileiras contemporâneas. •


VITRINE

Em tempos de discussões sobre apagamentos históricos soa tão oportuna quanto curiosa a coletânea Tênebra: Narrativas Brasileiras de Horror (Fósforo, 456 págs., 89,90 reais), que reúne 27 textos escritos entre 1839 e 1899 por autores como Cruz e Sousa e Machado de Assis.

Os Condenados da Terra, incontornável texto de Frantz Fanon sobre o colonialismo e a luta antirracista, ganha uma nova edição da Zahar (376 págs., 59,90 reais) que traz, além de textos de apresentação inéditos, o prefácio escrito por Jean-Paul Sartre para a edição original, de 1961.

A Rússia de Putin é o pano de fundo do primeiro romance do cientista político italiano Giuliano da Empoli. Embora tenha como protagonista um personagem de nome fictício, Vadim Baranov, a trama de O Mago do Kremlin (Vestígio, 256 págs., 59,80 ­reais) é tecida a partir de figuras reais.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1236 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um crime, uma menina e um país “

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