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Um certo senso de integridade

Premiada recentemente no Festival de Veneza e em evidência no streaming, com uma nova série, Nicole Kidman mantém-se, há décadas, no auge

Um certo senso de integridade
Um certo senso de integridade
Personagens. Este ano, a atriz brilhou no thriller erótico 'Babygirl' e na série 'O Casal Perfeito'. Em 1999, fez história, ao lado de Tom Cruise, em De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick – Imagem: A24, Warner Bros Pictures e Netflix
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Na série O Casal Perfeito, que estrou recentemente na Netflix, alguém, re­fe­rin­do-se à personagem de Nicole Kidman, Greer, diz: “Você nunca sabe onde você está com ela… Quer dizer, uma certeza é que é abaixo dela”.

Essa cena parece menos destinada a quebrar o distanciamento da personagem do que a fazer menção à própria atriz, uma estrela majestosa e imprevisível de 1,80 metro de altura que, mesmo após décadas de carreira, continua no auge de seu poder.

Somente neste ano, Nicole arrasou no festival de cinema de Veneza com o thriller erótico Babygirl, que lhe rendeu, no mês passado, o prêmio de melhor atriz; estrelou O Casal Perfeito; produziu e interpretou a protagonista da minissérie trágico-melosa Expats, de Lulu Wang; e se apaixonou por um astro de cinema interpretado por Zac Efron em Tudo em Família.

Ainda assim, ela fala em fazer mais. Um de seus desejos, inclusive, é um dia estrelar um filme de terror “barra-pesada”.

Quer esse desejo por sangue seja ­realizado quer não, há pouco mais para Nicole, de 57 anos, riscar de sua lista de desejos cinematográficos. Ela ganhou Emmys, Globos de Ouro, um ­Bafta e um Oscar. Participou de filmes musicais, policiais, de super-heróis e comédias, e usou próteses questionáveis em vários filmes biográficos.

Ela estrelou e produziu um dos melhores elencos liderados por mulheres da televisão na série Big Little Lies, da HBO, mantendo o senso de integridade. A idiossincrasia de sua filmografia mostra uma atriz que é intransigente em seu interesse artístico e não persegue projetos para ganhar Oscars ou montes de dinheiro.

O último, Babygirl, da diretora holandesa Halina Reijn, de Bodies ­Bodies Bodies, foi escrito pensando nela. O filme, que remonta à era do suspense erótico, mas está firmemente assentado no presente feminista, mostra uma CEO glamourosa, vivida por Nicole ­Kidman, envolvida num triângulo amoroso pervertido com Antonio Banderas e Harris Dickinson.

Sua filmografia mostra uma artista, em certa medida, intransigente, que não se guia apenas pelo desejo de Oscars ou montes de dinheiro

O filme não reduz a atriz ao papel de uma mulher naturalmente fatal, mas retrata de forma nua e crua uma turbulência interna e os esforços necessários para se conservar a fachada de glamour. Para manter uma aparência de tranquilidade, a personagem recorre a roupas justas, generosas injeções de botox, piscinas de imersão, terapia de luz e crioterapia.

À medida que a complexa dinâmica com o marido e o amante se torna cada vez mais confusa, Nicole prova, de novo, por que é uma das melhores e mais sutilmente transgressoras estrelas de Hollywood.

A atriz australiana deu seus primeiros passos em direção ao estrelato presa num iate com Sam Neill e Billy Zane no suspense Terror a Bordo (1989), atingiu a maioridade ao lado de Thandiwe Newton num internato na década de 1960 em Flertando: Aprendendo a Viver (1991). Tinha atraído a atenção global um pouco antes, ao estrelar, ao lado do futuro ex-marido, Tom Cruise, em Dias de Trovão (1990), filme que, por um curto ­período, ameaçou rotulá-la de “Sra. Cruise”.

Mas, em vez de se contentar em interpretar o alvo romântico glamouroso do protagonista dentro e fora das telas, ela embarcou em Um Sonho Sem Limites (1995), que satiriza a narrativa sobre mulheres ambiciosas e sexualmente liberadas e critica a obsessão dos tabloides por elas.

Um de seus maiores papéis viria de uma de suas filmagens mais longas: ao lado de Cruise, ela passou dois anos em De Olhos Bem Fechados. Ela talvez seja a única pessoa que terminou um filme de Stanley Kubrick desejando que tivesse durado mais, como disse à BBC em 2022: “Eu teria filmado aquela coisa por cinco anos, não me importava… Estou com o maior cineasta”.

De Olhos Bem Fechados, lançado em 1999, ganhou manchetes por suas cenas explícitas de orgia mascarada, mas é também considerado uma obra-prima. O monólogo de Nicole sobre sua insatisfação com a monogamia, enquanto fuma um baseado, é o melhor de uma carreira repleta de monólogos poderosos.

Papel feminista. No mês passado, Nicole ganhou o prêmio de melhor atriz em Veneza – Imagem: Redes Sociais/Festival de Veneza

Corrina Antrobus, crítica de cinema, fundadora do festival Bechdel Test e autora de I Love RomComs & I Am A ­Feminist, diz: “De Olhos Bem Fechados é do fim dos anos 1990, uma época horrível, cheia de paparazzi objetificando as mulheres. Revistas como Hello! estavam no auge da venda da fantasia do casamento perfeito, da venda de seu casamento por milhões de libras. Mas, no filme, temos Tom e Nicole – um casal real de Hollywood – quebrando a fantasia e ousando apresentar uma mulher com desejos próprios”.

Na coletiva de imprensa de Babygirl, Nicole explicou: “Abordo tudo artisticamente, então não penso em minúcias, e sim em como me entregar à personagem completamente, sem censurar meu diretor”. Neste caso, o filme exige um nível de coragem inacessível à maioria dos atores, tanto em cenas de sexo centradas no prazer feminino quanto em interpretar uma CEO poderosa que suporta, com boa vontade, melhorias cosméticas e tormento psicossexual.

Apesar de suas muitas aparições sensacionais no tapete vermelho, da filmografia densa, de um casamento badalado com Cruise – desfeito em 2001 –, do casamento subsequente com o astro da música ­country Keith Urban e muitas aparições charmosas em programas de entrevistas, Nicole Kidman sempre manteve uma aura de mistério em torno de si. De sua vida só temos visões breves ou selecionadas.

Ela raramente fala sobre sua vida privada, e escondeu um noivado com o astro do rock Lenny Kravitz durante anos. Mas as espiadas que conseguimos dar são fascinantes.

Num momento que supostamente inspirou uma das falas mais citadas de Barbie, de Greta Gerwig, Nicole sentou-se com sua colega de elenco de Big Little Lies, Reese Witherspoon, que esperava conversar sobre filmes, mas, em vez disso, perguntou: “Você já pensou em morrer, Reese? Porque eu penso nisso o tempo todo”.

Como atriz, ela está constantemente revelando novas profundidades. ­Corrina Antrobus diz: “Acho que ela toma decisões conscientes para garantir que as pessoas não se esqueçam do quão multifacetada é. Embora seja alguém que pode ser vista como tensa, ela simplesmente se desenrola de forma erótica e bela”.

Aos 57 anos, ela diz que um de seus desejos é estrelar um filme de terror “barra-pesada”

É uma carreira com seus tropeços­ – remakes de Mulheres Perfeitas e A Feiticeira fracassaram sem deixar vestígios –, mas a maioria dos atores só poderia sonhar em ter causado tamanho impacto cultural.

Em Tudo em Família, lançado na ­Netflix em junho, seu primeiro papel principal numa comédia romântica, ela mais uma vez mostrou sua força. Como Antrobus coloca, o filme é “uma comédia romântica moderna que tem uma representação da mãe como uma mulher com necessidades sexuais e mostra uma mulher a navegar em um rito de passagem muito verdadeiro, buscando aceitar que está na hora de servir a si mesma”.

Servindo a si mesma, Nicole ­Kidman dá sinais de que não vai reduzir o ritmo tão cedo. Estão anunciados sete projetos em que aparece como produtora, Big Little Lies deverá retornar para uma terceira temporada e está a caminho a aguardada adaptação de Kay ­Scarpetta, de Patricia Cornwell, em que estará no papel-título.

Desde Veneza, o burburinho em torno de Babygirl tem aumentado e, embora ainda não se saiba se o papel será perturbador demais para um Oscar, Nicole Kidman já ganhou o grande jogo.

Seja vendo-a como a escritora glamourosa que vive numa mansão em ­Nantucket, a mãe que se apaixona por um jovem astro de cinema ou a CEO robótica pervertida que monta em Harris Dickinson, nunca foi tão emocionante estar abaixo de Nicole Kidman. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1331 de CartaCapital, em 09 de outubro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Um certo senso de integridade’

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