Cultura
Um cellista e seu arco sem-fim
Antonio Meneses lembra os 40 anos do prêmio no Concurso Tchaikovski, em Moscou, com um álbum dedicado às sonatas e canções de Brahms


Em um vídeo gravado 40 anos atrás, com uma câmera que enquadrava o solista e o maestro – este de costas – vemos um violoncelista de óculos e cabelos encaracolados executar as Variações Rococó, de Tchaikovski.
O músico era Antonio Meneses e a gravação ocorrera no dia 6 de julho de 1982. Na véspera, no Estádio Sarriá, em Barcelona, a Seleção brasileira havia saído da Copa do Mundo, vencida por uma Itália na qual nem os italianos mais fervorosos apostavam. Mas, naquele mesmo dia 6, outro ouro estava reservado para o Brasil: o de Meneses, vencedor do Concurso Tchaikovski, em Moscou.
O prêmio lançaria o jovem nascido no Recife, em 1956, em uma família de músicos, no panorama internacional. De lá para cá, o violoncelista tornou-se um mito da música clássica.
Ainda me lembro de um dos primeiros CDs que comprei, com Meneses tocando o Concerto Duplo de Brahms, ao lado da violinista Anne-Sophie Mutter, sob a regência de Herbert von Karajan, na Filarmônica de Berlim. O álbum, gravado pela Deutsche Grammophon, em 1982, trazia uma linda foto dos três artistas.
Ao longo da carreira de sucesso, Meneses, há muitos anos radicado na Suíça, rodou o mundo como solista das mais importantes orquestras, acompanhado por regentes lendários, como Abbado, Jansons, Previn e Rostropovich.
Viajante curioso e entusiasmado, lançou-se, em 1998, em uma nova aventura junto aos companheiros do Trio Beaux Arts, grupo histórico que, então, tinha acabado de perder seu violoncelista fundador Bernard Greenhouse. Meneses permaneceu no trio até 2008.
Foi nesse naquele período, na minha opinião, que seu crescimento musical e artístico foi mais profundo. No Beaux Arts, foi sendo construído, aos poucos, o refinado camerista como o conhecemos hoje.
Agora, em comemoração aos 40 anos da medalha de ouro e aos 65 anos de vida, nosso maior violoncelista lança novo álbum, gravado em 2021, no retorno do período mais duro do isolamento social: Brahms – Cello Sonatas & Songs, em duo com o pianista Gérard Wyss, parceiro de longa data.
No CD, o artista abraça um dos mais preciosos repertórios para a formação piano e violoncelo
O CD sai pela Avie Records, do Reino Unido, com quem o violoncelista já havia trabalhado nas gravações, entre outras, das Seis Suítes para Cello, de Bach, dos trabalhos completos para piano e cello de Schubert, e no álbum Elgar & Gál: Cello Concertos, com a Royal Northern Sinfonia e Claudio Cruz, indicado ao Grammy.
Brahms – Cello Sonatas & Songs abraça um repertório dos mais preciosos para esta formação, o que nos permite ter como que uma fotografia instantânea da maturidade de ambos. A profundidade sonora com a qual abordam, por exemplo, o início da Sonata nº 1 op. 38 diz muito sobre o álbum inteiro.
E se Meneses nunca se aproveita do domínio instrumental para elaborar efeitos especiais que possam impressionar, aqui sua essencialidade está ainda mais acentuada. O que ouvimos são leituras límpidas, como as águas dos lagos tão amados por Brahms.
Ao ouvir o segundo movimento da Sonata nº 1, eu estava à espera da parte central, com seu canto que parece não terminar nunca, e que sempre me provoca arrepios. E então tive mais uma revelação.
Com a simplicidade de sempre, a voz de tenor do cello de Meneses flutua acima do acompanhamento pianístico com uma liberdade que, de tão natural, oculta as decisões racionais tomadas pelos dois músicos.
Acho, aliás, que a grandiosidade de uma interpretação reside, exatamente, em não mostrar as dificuldades, os caminhos, as decisões tomadas, e apresentar uma ideia que quem escuta acha ser a única possível.
Entre a primeira e a segunda sonatas, temos 7 Lieder, que valoriza ainda mais a “cantabilidade” de Antonio Meneses. A sensação do arco sem-fim, de respiro único da primeira à última nota, é, obviamente, resultado de horas de estudo, mas ainda mais de anos de amadurecimento humano e profissional.
Essas canções evidenciam aquilo que me parece ser a virtude máxima para um instrumentista: ultrapassar os limites de seu instrumento e alcançar um canto livre, revelador de um universo musical sem barreiras. •
*Emmanuele Baldini é spalla da Osesp.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1222 DE CARTACAPITAL, EM 24 DE AGOSTO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Um cellista e seu arco sem-fim “
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