Cultura
Tudo muda o tempo todo
Em constante reinvenção, Lulu Santos tem os 40 anos de carreira revisitados em um show e em um álbum-tributo que reúne canções obscuras


Quando toca os primeiros acordes de Tesouro da Juventude, canção que abre o show Alô, Base, disponível no GloboPlay, Lulu Santos mostra por que é a melhor tradução do pop brasileiro. O show – cuja turnê foi novamente cancelada esta semana, por causa da Ômicron – é, aliás, o atestado de seu reinado: Alô, Base reúne sucessos de uma trajetória que explorou uma quantidade impressionante de gêneros musicais. Lulu foi do rock ortodoxo às misturas com o samba, do soul e funk americanos à sua vertente carioca, do rap e da música eletrônica às sonoridades orientais.
“São 40 anos de repertório. Tem um bocado para investigar, sobretudo como aquilo deu nisso”, diz, em entrevista a CartaCapital. Lulu, contudo, não se sente confortável ao falar de sua contribuição. “Não sei se é apropriado responder sobre a própria relevância. Sei que permaneço atento e interessado, o resto é decorrência”, diz.
Também esta semana chegou às plataformas Futuro do Passado – As Canções de Lulu Santos, tributo feito pelo DJ e produtor Zé Pedro e pelo jornalista Renan Guerra e lançado pela gravadora Joia Moderna. O álbum traz 14 recriações de canções de Lulu em versões vibrantes do grupo baiano Astralplane (Cadê Você), da mineira Jennifer Souza (Vale de Lágrimas) e do paraense Reiner (Um Dia na Vida).
“Lulu é o ídolo maior da minha geração. Sempre me intrigou o fato de compor tantas canções fadadas ao sucesso e de, mesmo assim, algumas terem ficado escondidas em seus álbuns. Quis propor um novo foco através de artistas da novíssima geração”, diz Zé Pedro. Com exceção de Certas Coisas e A Cura, boa parte da compilação é composta de faixas obscuras ou criações que Lulu fez para outros artistas, caso de Boba, que Erasmo Carlos registrou em Buraco Negro, de 1984.
Nascido Luiz Maurício Pragana dos Santos, no Rio, Lulu, 68 anos, está para o showbiz brasileiro assim como David Bowie para o universo musical europeu e americano, no sentido de serem os dois artistas em constante mutação. “Lulu é movido pela curiosidade e não tem medo de arriscar”, diz Henrique Portugal, tecladista do Skank, herdeiro declarado da energia que Lulu exala nas apresentações.
Lulu iniciou-se no rock progressivo ao integrar, como guitarrista, as bandas Ave de Veludo e Vímana, ao lado de Ritchie e Lobão. Aderiu às melodias mais radiofônicas em 1980, a partir da balada soul Melô do Amor, que assinou como Luiz Maurício. “Criei essa canção pensando em Tim Maia, queria que ele a cantasse”, revela.
“Às vezes, a gente é feliz nas escolhas”, diz, aos 68 anos, o guitarrista, cantor e compositor carioca
Luiz Maurício viraria Lulu no ano seguinte, com o disco Tempos Modernos. O repertório de composições solares e acessíveis, repletas de influências do rock e da MPB, fizeram com que parte da crítica, de forma preconceituosa, classificasse seu estilo como “rock de bermuda”. Paralamas e Kid Abelha receberam esse mesmo olhar de lado por estarem criando uma música jovem, com características brasileiras, e capaz de conversar com diferentes idades e classes sociais.
Outra contribuição do pop star está na maneira como soube transferir a energia das danceterias – como eram chamadas as casas de shows nos anos 1980 – para os festivais. O cantor é um entertainer que anima plateias e nunca deixa a temperatura cair nos shows.
Seu gosto pelas performances se estende para os colegas de ofício. Certa vez, comparou a alegria das apresentações de Ivete Sangalo com os shows das bandas de rock nacional dos anos 1980. Lulu, inclusive, sempre foi muito aberto ao vindouro, fosse qual fosse o estilo. A curiosidade musical já o levou a gravar participações com o trio carioca Melim, a cantora Luísa Sonza e o grupo Fresno. “Eles me procuram, fico lisonjeado e, se estiver ao meu alcance, colaboro. Mal não faz, pelo contrário”, diz.
Para muitos colaboradores do artista, sua importância ultrapassa a esfera musical. “Ele é uma referência na vida das pessoas”, diz o DJ e produtor musical Memê, que iniciou uma celebrada parceria com Lulu na segunda metade dos anos 1990. “Uma música de Lulu é, normalmente, uma lição de vida”. Não se trata de elogio proforma. Uma canção como Tempos Modernos, que completou 40 anos em 2021, é ainda hoje um símbolo de esperança por dias melhores. Lançada em 1985, durante a abertura política, foi adaptada para o mundo dançante em uma produção de Memê para o grupo Make U Sweat, em 2018, antes das eleições que terminariam com a desesperança. A Cura, de 1988, foi regravada no ano passado, com o mundo assolado pela pandemia, em dueto com o cantor gaúcho Victor Kley.
A postura de Lulu fora dos palcos também tem angariado aplausos. Em 2018, ele anunciou o namoro com o analista de sistemas Clebson Teixeira, com quem se casou no ano seguinte. “Minha relação não é premeditada, mas tampouco escondida”, diz. “Já tive feedback de gente que foi positivamente mudada pela ‘revelação’. Não tomo como uma missão, vivo minha vida como acontece. Por ser uma pessoa pública, tudo ganha esses contornos. Me honra saber que a revelação possa ter quebrado alguns tabus.”
No fim do ano passado, o cantor lançou LULU Traço e Verso, livro que traz as letras e cifras das músicas. “Levei quase dois anos desenvolvendo esse projeto. A pandemia fez com que eu pudesse me dedicar a ele com mais tempo”, conta. John Lennon, quando perguntado qual a razão do sucesso dos Beatles, declarou que, se soubesse a fórmula, enfiaria quatro moleques num terno e faturaria à custa deles. “Se tivesse segredo ou fórmula, ninguém errava uma, e isso dificilmente acontece”, comenta Lulu. “Mas, às vezes, a gente é feliz nas escolhas.” •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.
CRÉDITOS DA PÁGINA: GUTO COSTA
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