Cultura
“Tudo ficou muito barulhento”
Em seu novo livro, Irvine Welsh, o festejado autor de ‘Trainspotting’, navega pelo tema da transgeneridade


Irvine Welsh, de 65 anos, foi criado em Muirhouse, no norte de Edimburgo, na Escócia, vive em Oxfordshire, no sudeste da Inglaterra, e passou a maior parte da década de 2010 nos Estados Unidos, em Chicago e Miami. Longas Lâminas, seu 13º romance, é uma sequência de Crime, de 2008, transformado em série de tevê, com Dougray Scott no papel do detetive Ray Lennox. No novo livro, Lennox tem a tarefa de resolver o assassinato de um parlamentar conservador encontrado castrado em um depósito de Leith. O pano de fundo do livro é transgeneridade.
The Observer: Você sempre planejou escrever uma sequência para Crime?
Irvine Welsh: Ter escrito o programa de tevê baseado no livro despertou minha curiosidade. Estávamos contando a história da família de Lennox e o que aconteceu com ele quando criança. Como a série estava indo bem e havia a chance de uma segunda temporada, escrevi sobre o que aconteceria caso Lennox encontrasse os caras que abusaram dele. Eu estava escrevendo um romance antes desse, mas acelerei a escrita de Longas Lâminas porque achei que, se conseguisse terminar a tempo, a segunda temporada do programa poderia se basear nele. Eu não lançava um livro desde 2017, mas agora eles vão sair rápido, até porque não fiz nada durante o confinamento gerado pela Covid-19 que não fosse escrever.
TO: O que o levou ao enredo transgênero do romance?
IW: Pensei que eram águas muito interessantes onde navegar. Estamos todos fazendo perguntas fundamentais sobre identidade, agora que as coisas que nos definiam estão desaparecendo. É algo complexo, de imagem em movimento. Você não sabe o quanto isso é uma distração para nos manter agarrados à garganta uns dos outros politicamente: se as mulheres trans competirem no atletismo, ou se forem barradas, não vai mudar o fato de que muitas pessoas vão morrer porque não conseguem pagar a conta do serviço de aquecimento durante o inverno. Ao mesmo tempo, são águas revoltas, porque tudo ficou muito barulhento. Tínhamos um consultor trans no livro, e eu estava com medo. Pensei: vai ser mais uma camada de censura. Mas foi incrivelmente educativo. Aprendi muito.
Longas Lâminas. Irvine Welsh. Tradução: Rogério Galindo. Rocco (421 págs., 89,90 reais)
TO: Alguma coisa mudou no livro?
IW: Certas coisas mudaram – algumas eram coisas que eu, simplesmente, entendia errado. Fico feliz por ser corrigido. E foi bom ver minha motivação ser compreendida.
TO: O que o atrai para o tema do abuso sexual em seu trabalho?
IW: Gosto de desafiar, perturbar, e irritar a mim mesmo quando escrevo. Esta é a motivação: me forçar a olhar para coisas que não são vistas na ficção, ou são vistas de forma muito banal a partir da posição divina do autor. Me interessa buscar o ponto de vista das pessoas realmente envolvidas que, muitas vezes, são reduzidas a simplórios bárbaros, como se não houvesse raízes para seu comportamento.
TO: No entanto, como a maioria de seus romances recentes, Longas Lâminas é um tipo de comédia.
IW: Costumo usar o humor para dar uma folga ao leitor. Se você está forçando as pessoas a olhar para um material potencialmente intolerável, deve dar espaço para que elas se reiniciem. Você pode mostrar o máximo de escuridão, desde que esteja tateando em busca do interruptor de luz.
TO: O enredo nem sempre dirigiu sua ficção, como faz agora.
IW: Não, aprendi a fazer isso ao longo dos anos. Eu não sabia escrever um romance quando escrevi Trainspotting. Tinha essas histórias soltas, que pareciam ir para algum lugar. No começo, estava falando muito sobre como os personagens se tornaram viciados, então cortei e fui direto para o mundo deles e terminei com um final que pensei que seria dramático. Então, segui para mais contos. Marabou Stork Nightmares foi minha primeira tentativa de um romance convencional, mas acabou sendo bastante experimental. Naqueles primeiros livros, eu estava apenas brincando. Provavelmente, foram os melhores, porque depois você aprende a escrever e acaba escrevendo como todo mundo (risos).
TO: O que você tem lido recentemente?
IW: O último da série The Secret DJ, que eu realmente curto. Voltei a discotecar compulsivamente no ano passado e o livro traz DJs falando sobre como entraram no ramo. Acabei de terminar Mrs. Caliban, Rachel Ingalls, de que gostei – é meio estranho e legal. A outra coisa que tenho gostado de ler são os poemas de Stéphane Mallarmé. Não sei ler francês, mas adoro a maneira como, na edição, tem o francês ao lado do inglês.
TO: Quais romances o inspiraram?
IW: A trilogia A Espada e a Honra, de Evelyn Waugh, me influenciou muito. Um impulso profundo, para querer escrever, veio dos grandes livros escoceses que fizeram todo mundo pensar: “Uau, isto é ótimo”: Laidlaw, de William McIlvanney, The Busconductor Hines, de Kelman, Lanark, de Alasdair Gray, e The Trick Is to Keep Breathing, de Janice Galloway. Mas muitas das coisas que me inspiram são aquelas que ouço de pessoas gritando umas com as outras nas filas, nos bares, nos ônibus. Eu não dirijo, e o transporte público é um lugar realmente fabuloso para pegar referências.
TO: Você já se sentiu tentado a escrever uma autobiografia?
IW: Tenho duas equipes de documentaristas que me seguem, para fazer filmes sobre mim, então a última coisa de que preciso é uma autobiografia. Até certo ponto, você tem de ser um egoísta para ser qualquer tipo de artista, mas não estou realmente interessado em me olhar de fora. Minha mulher diz: “Você é, simplesmente, esquisito”. E eu não quero mostrar ao mundo a porra da minha estranheza, sabe? Mas essas coisas te pegam desprevenido. No fundo, a gente não percebe que, quando escreve, está sempre se expondo de maneira bizarra. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1271 de CartaCapital, em 09 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘“Tudo ficou muito barulhento”’
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