Cultura

‘Tropas estelares’, um clássico da ficção científica de direita

Dos romances de Robert Heinlein, este é o mais militarista e um dos mais panfletários; há quem o classifique como fascista, o que é uma leitura possível

Na adaptação para o cinema, Paul Verhoeven salpicou a trama triunfalista de alusões ao nazismo
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Na linha de republicação de clássicos da ficção científica, a Editora Aleph traz de volta Tropas Estelares de Robert Heinlein (R$ 39,90, 352 págs.), obra de 1959.

Às vezes considerado um dos “três grandes” autores da chamada “Idade de Ouro” da ficção científica ao lado de Isaac Asimov e Arthur C. Clarke, o chauvinista Heinlein foi destes o mais à direita no campo ideológico. Partidário do ultraconservador Barry Goldwater e de sua luta contra o New Deal e os direitos civis nos anos 1960 e de Ronald Reagan nos anos 1980.

Engajou-se com este na defesa da militarização do espaço e em amargos debates com cientistas e escritores mais pacifistas e cosmopolitas que combateram o projeto “Guerra nas Estrelas”, “Os (Carl) Sagan, os (Isaac) Asimovs, os (Richard) Garvins, os Arthur Clarkes” e outros “tolos de mentes frouxas que fantasiam sobre um mundo que não existe”, escreveu na época.

Dos romances de Heinlein, Tropas Estelares é o mais militarista e um dos mais panfletários. Há quem o classifique como fascista e essa é uma leitura possível, como mostrou Paul Verhoeven com a adaptação cinematográfica de 1997, na qual salpicou a trama triunfalista e as ladainhas doutrinárias de Heinlein de alusões ao nazismo e ironicamente as enquadrou como propaganda de recrutamento de um regime totalitário do futuro. Por a obra contexto da época e da produção do autor possibilita, porém, um julgamento mais preciso e matizado.

Trata-se, entre outras coisas, de uma peça de propaganda da Guerra Fria, na qual os “insetos” combatidos em seu planeta natal pelos fuzileiros espaciais de Heinlein são comparados com a União Soviética – exceto que os alienígenas estão efetivamente adaptados para o comunismo pela evolução e são eficientes nisso, explica o autor.

É uma guerra que só pode acabar com a destruição de um dos lados e em nome dela se justifica o autoritarismo dos comandantes militares, o desprezo aos civis, as punições bárbaras, a vida de humilhação, sacrifício e punição imposta aos recrutas e um regime no qual o direito a voto é restrito a veteranos reformados.

Por outro lado o romance Um Estranho numa Terra Estranha (1961) do mesmo Heinlein e do da mesma fase embute forte desconfiança do Estado e apologia do hedonismo. Em Revolta na Lua (1966) defende-se um “anarquismo racional”, no qual Estado e Sociedade existem apenas como “atos de indivíduos responsáveis” e o desejo de anarquia é equilibrado pela necessidade prática de uma forma de governo.

Não é que brincasse com ideias contraditórias sem leva-las a sério: Heinlein tinha posições políticas fortes e apaixonadas. Entretanto, estas não podem ser facilmente reduzidas ao fascismo, nem mesmo ao conservadorismo ou ao libertarianismo, embora partidários destas duas correntes o reivindiquem como um dos seus.

Que Heinlein não era um reacionário típico fica claro até mesmo em Tropas Estelares, que evita a exaltação do macho anglo-saxão ainda bem comum nas obras da época. O herói Juan “Johnny” Rico é filipino e os nomes de seus camaradas indicam muita diversidade étnica.

O exército de fuzileiros espaciais é exclusivamente masculino (diferentemente do que se passa no filme), mas a “marinha espacial” é formada apenas por mulheres, respeitadas pelos soldados e tidas como superiores em matemática, talvez porque na vida real, Heinlein era casado com uma engenheira química especialista em foguetes cuja patente na Marinha era superior à dele. 

Outras obras dele deixam claro o elogio do sexo livre e seu desdém quase nietzschiano pela religião e pelos valores morais. Em alguns aspectos, é preciso reconhecer, estava à frente do liberal Asimov, mais preso às convenções da época.

No conto Coventry (1940), Heinlein zomba dos dogmas e ideais do libertarianismo, da democracia, do totalitarismo e da religião mais ou menos em proporções iguais. Seu ponto de vista era fundamentado em “realismo biológico”, como indica uma das passagens mais sentenciosas de Tropas Estelares: “A guerra e a perfeição moral derivam da mesma herança genética.

Todas as regras morais corretas derivam do instinto de sobreviver; um comportamento moral é um comportamento de sobrevivência acima do nível do indivíduo. Ou nos expandimos e acabamos com os insetos, ou eles se expandem e acabam com a gente, pois ambas as espécies são duras, inteligentes e querem as mesmas propriedades imobiliárias.

A moral correta surge do conhecimento do que o Homem é, e não do que os fazedores do bem e os bem-intencionados gostariam que ele fosse”. Está no capítulo XII, dedicado ao curso de História e Filosofia da Moral (o único discutido em detalhes) infligido ao protagonista, mas seu teor se repete em diferentes contextos na ficção e no discurso político do autor.

Troque-se “o Homem” por “o Ariano” e “insetos” por “judeus” ou “eslavos” e o resultado poderia ser tomado por uma sinopse de Mein Kampf. Quando direitos e valores são desdenhados em nome de supostas leis biológicas, desliza-se com facilidade do anarcocapitalismo ao totalitarismo, conforme se queira acreditar em tal ou qual interpretação da “ciência” e se prefira enfatizar a sobrevivência do indivíduo ante a massa ou da comunidade ante seus inimigos.

Se o mundo de Tropas Estelares não chega a ser o do III Reich é porque Heinlein não tinha as mesmas convicções de Hitler sobre gênero e raça (dizia não saber se havia provas suficientes para concluir se os negros eram inferiores ou não), mas também porque trapaceia com suposições pouco realistas. Os direitos políticos são condicionados ao serviço militar voluntário e a maioria não se alista. Os cidadãos são minoria (“menos de três por cento em algumas nações terranas”, especifica o autor) e os demais meros “residentes legais”, em contradição com o grau de mobilização necessário a uma guerra total.

Não é só nesse detalhe importante que a obra deixa a desejar. Heinlein serviu a bordo de um porta-aviões em tempo de paz, de 1929 a 1934, mas foi desligado por uma tuberculose e passou a II Guerra Mundial trabalhando em engenharia aeronáutica para a Marinha no estaleiro de Filadélfia, ao lado de Isaac Asimov e L. Sprague de Camp.  

Na descrição dos combates e da vida nos quartéis, a “grande aventura militar” anunciada na contracapa soa como farsa quando comparada a obras de autores que de fato conheceram a guerra em primeira mão, notadamente Guerra Sem Fim (Ed. Landscape, 2009, edição esgotada), ficção científica de 1974 de Joe Haldeman, veterano do Vietnã. Em veracidade, perde até para romances de fantasia como O Senhor dos Anéis de J. R. R. Tolkien, oficial na I Guerra Mundial.

Na guerra de Heinlein, os comandantes nunca tomam decisões mesquinhas ou estúpidas e suas decisões, mesmo quando parecem cruéis ou absurdas, são sempre justificadas. Os relacionamentos entre os personagens são superficiais, assim como suas reflexões e casos amorosos. Os guerreiros nunca têm medo nem dúvidas sobre sua causa e seus equipamentos sempre funcionam de maneira impecável. Entre estes, as famosas armaduras militares robóticas com comandos e sensores embutidos nos capacetes. Essa ideia hoje comum na ficção científica e prestes a se tornar realidade foi proposta pela primeira vez nesta obra.

É um livro obrigatório para quem quer conhecer a história da ficção científica e ideias polêmicas expostas com uma retórica brilhante, mas não para quem deseja envolver-se com personagens consistentes, tramas bem construídas e cenas de combate convincentes.

Para o bem ou para o mal, Tropas Estelares é uma obra sobre política, na qual personagens, naves, trajes de assalto, bombas e cenas de ação existem como reforço retórico às ideias do autor.  É a guerra vista através de filmes de propaganda patriótica, com o acréscimo de os inimigos serem literalmente insetos.  É esse aspecto, mais que as tiradas doutrinárias muito resumidas no filme, que o tornou um alvo tão fácil da ironia de Verhoeven.

Quando lhe perguntaram por que fazia um filme fascista, respondeu: “Se eu disser ao mundo que o fascismo não funciona, ninguém vai me ouvir.  Então farei um mundo fascista perfeito: todos são bonitos, tudo é brilhante, todos tem armas grandes e naves fantásticas, mas isso só serve para matar insetos”.

Uma amostra da vistosa e brutal eloquência de Heinlein:

Somos os caras que vão a um lugar específicos, na hora H, ocupamos um terreno determinado, ficamos nele, arrancamos o inimigo de seus buracos e fazemos com que ele, ali e na hora, se renda ou morra. Somos a maldita infantaria, os pracinhas, os “pé de poeira”, o soldado a pé que vai até onde o inimigo está e o enfrenta em pessoa. Temos feito isso, com mudanças nas armas, mas poucas no ofício, pelo menos desde cinco mil anos atrás, quando os marchadores de Sargão, o Grande, forçaram os sumérios a pedir água.

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