Cultura
Três Marias contra Salazar
Novas Cartas Portuguesas é um símbolo do espírito da Revolução dos Cravos, que acaba de completar 50 anos


O que pode a literatura? O questionamento está no centro de Novas Cartas Portuguesas. As escritoras Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa reconheciam a ousadia de sua proposta, uma obra escrita a seis mãos femininas, em pleno regime salazarista em Portugal. No prefácio à edição britânica, elas explicam: “O QUE está no livro não pode ser dissociado de COMO ele surgiu”.
A composição é, no mínimo, curiosa. O vasto material constitui um conjunto fragmentário, que abarca diferentes gêneros: ensaio, conto, poesia e epístolas reunidos durante nove meses – gestação é um termo propício para o processo. Mais que uma defesa da autonomia (ou anarquia) das formas literárias, o arranjo é um exercício democrático.
Novas Cartas Portuguesas traduz, em termos estéticos, uma obra que se propõe a desafiar um regime ditatorial. O Estado Novo português foi o plano de fundo da criação do livro. Desde 1933, a situação política de Portugal era marcada pela repressão que tinha como figura principal António de Oliveira Salazar.
Em 1971, a censura atinge as autoras das Novas Cartas, conhecidas como as Três Marias. Nascidas em Lisboa, elas se deparam com a perseguição da ideologia da “moral e dos bons costumes”. Maria Teresa Horta, em especial, teve seu livro de poemas Minha Senhora de Mim (1971) embargado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (Pide).
Surge assim a ideia de oferecer ao público uma obra contestadora . Horta não andava só. Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa juntaram-se à empreitada. Os bastidores da escrita de Novas Cartas Portuguesas são iluminados na edição da Todavia por um ótimo prefácio da escritora Tatiana Salem Levy – o volume conta ainda com orelha assinada por Dulce Maria Cardoso.
As Três Marias questionam a noção de “autoria”. Seus textos não são assinados, indo contra à ideia de literatura como resultado de um gênio individual e abraçando um ideal de coletividade. Elas partem de Cartas Portuguesas, romance epistolar do século XVII que contém cinco cartas de amor da freira Mariana Alcoforado ao oficial Noël Bouton de Chamilly. Nelas, transparece o lamento e a clausura da jovem Mariana.
Novas Cartas não é a simples repetição desses temas. A obra, sobretudo, os subverte. As autoras dão destaque a motes como o isolamento, a separação, os preconceitos, a culpa, o erotismo e a moralidade. A condição da mulher dentro do patriarcado é dissecada por meio de uma escrita afiada, com tom tragicômico.
Sororidade é um termo que tem acalorado os ânimos dentro do feminismo do século XXI. De modo geral, a discussão gira em torno das interseccionalidades dentro da suposta “irmandade feminina”. Entretanto, ele é um conceito-chave dentro das Novas Cartas Portuguesas, que acena para a possibilidade de uma comunhão efetiva entre as mulheres.
Novas Cartas Portuguesas. Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa. Todavia (352 págs., 99,90 reais) – Compre na Amazon
O diálogo com Cartas Portuguesas evidencia também a questão da autoria e o debate entre realidade e ficção. Mariana Alcoforado foi uma freira portuguesa, reclusa em um convento de Beja. O escândalo em torno de seu romance com o Cavaleiro de Chamilly também é verídico. Contudo, enquanto alguns pesquisadores atribuem a escrita das cartas a Mariana, outros questionam a sua autenticidade.
Em Novas Cartas Portuguesas a vida da freira é propositalmente ficcionalizada. Marianas, Marias, Joanas. Múltiplas personagens povoam as páginas do livro. Muitas vezes dividem um mesmo nome, mas têm diferentes histórias, vivem em diferentes tempos e enfrentam diferentes dilemas.
A originalidade do conteúdo das Novas Cartas é acompanhada por uma forma autêntica, capaz de refletir a singularidade estética do livro. A obra levanta outra reflexão. A “novidade” nem sempre vem do ineditismo, mas da subversão de modelos antigos. O velho transforma-se, assim, no novo.
Com a perseguição salazarista, as autoras foram a julgamento. Elas receberam o apoio de nomes como Simone de Beauvoir e Marguerite Duras. Na capa da edição da Todavia vemos uma foto das Três Marias na saída do tribunal. A imagem transparece a união do trio – como na epígrafe da coletânea, que une o título de seus mais célebres livros.
A tecitura é uma das principais imagens de Novas Cartas Portuguesas: “Mas em teias seremos, se preciso, as três, aranhas astuciosas fiando a nossa arte, vantagem, nossa liberdade ou ordem”. Mote literário desde a Odisseia de Homero, o fiar tem caráter subversivo. Por séculos, a atividade foi vista apenas como uma virtude feminina. Por outro lado, ela é um símbolo da resistência das mulheres – um saber imaterial.
Em tempos em que a censura a livros voltou a nos rondar, Novas Cartas Portuguesas tem muito a nos dizer. Na astronomia, as Três Marias são estrelas cujo poderoso brilho serve como modo tradicional de orientação. Da mesma forma, Maria Isabel, Maria Teresa e Maria Velho são guias de uma literatura política e de valor estético. Elas afirmam escrever “por” e não “contra” um propósito.
O resultado é um texto combativo e belo, visto como um símbolo da Revolução dos Cravos – quando, em abril de 1974, Portugal derruba o salazarismo e caminha rumo à democracia. Voltamos à pergunta: mas o que pode a literatura? A definição não está apenas no conteúdo da obra. Novas Cartas Portuguesas é reflexo desse questionamento. Ou a resposta. •
Publicado na edição n° 1309 de CartaCapital, em 08 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Três Marias contra Salazar’
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