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Traços polivalentes

Luiz Gê, figura marcante da HQ no Brasil, reúne obras e experimentos realizados em seus 50 anos de carreira

Traços polivalentes
Traços polivalentes
Narrativa gráfica. O artista criou metáforas premonitórias da infindável luta cotidiana em um país selvagem - Imagem: Luiz Gê/MMarte
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Luiz Gê acaba de lançar mais uma garrafa no oceano. Melhor dizendo, um oceano numa garrafa. O mar, desta vez, é um catatau multicolorido, multiperformático, multitudo, que atende pelo nome de Fronteira Híbrida: Relações Improváveis Entre Música e Quadrinhos.

Luiz Geraldo Ferrari Martins, 71 anos, arquiteto de formação, quadrinista por paixão, chargista, designer, cenógrafo, produtor gráfico, teórico, professor universitário e dono de cultura ímpar, mostra não haver limites estéticos ou linguísticos entre seus múltiplos talentos.

O artista não apenas coloca para desfilar obras e experimentos realizados ao longo de 50 anos de carreira, como também escreve sobre dilemas enfrentados em cada época e em cada opção tomada. Uma de suas primeiras narrativas é a sequência de três páginas publicadas em Balão, revista autoral de quadrinhos dos tempos de estudante, que, nos idos de 1972, revelou, entre outros, Laerte, ­Angeli e os irmãos Caruso.

Gê apresentava uma sucessão de cenas de um personagem desesperado, em zoom out, pulando um muro. Quanto mais a “câmera” – ou o olhar do observador – se afasta, mais se vê que o muro é, na verdade, uma trama de paredes em cadeia que transforma o esforço do protagonista uma empreitada sem-fim. Metáfora premonitória do que é a luta cotidiana infindável num país selvagem ou coisa que o valha?

Outra narrativa, de 1975, intitulada Ano Santo, Ano da Mulher, enfeixa em sete páginas épicas o registro de um passe rumo ao gol, num eletrizante balé futebolístico.

FRONTEIRA HÍBRIDA.Luiz Gê. MMarte Produções (242 págs., 109 reais)

A produção polivalente do autor fica nítida em suas parcerias com Arrigo­ Barnabé, figura central da chamada vanguarda musical paulistana dos anos 1980. “Arrigo apareceu em casa querendo a capa para um novo disco. Nesse dia, eu mostrei a ele a história em quadrinhos (Tubarões Voadores)”, conta Gê. O músico não resistiu: “Meu disco ia se chamar Crotalus Terrificus. Mas vi a história do Gê e falei a ele: Meu, isso é música (…). No final, acabei até mudando o nome do disco”. Nascia ali um clássico da década.

Mais da metade do livro é ocupada pelas parcerias entre os dois ex-colegas da FAU-USP, que têm seu ponto alto em três óperas – O Homem dos ­Crocodilos, Enquanto Estiverem Acesos os Avisos ­Luminosos e A História do Soldado – encenadas em São Paulo nos anos 2000.

Na segunda delas, uma celebração dos 100 anos da aviação que tem ­Santos-Dumont como protagonista, Luiz Gê cria uma cenografia constituída por duas grandes asas mecânicas que serviram como tela para a projeção de vídeos e animações.

Os trabalhos são exibidos em quadrinhos que misturam fotos, rascunhos, textos e balões, numa narrativa gráfica distinta de sua versão teatral. Luiz Gê parece ter um propósito: mostrar que, apesar de sua versatilidade estética, é um autor cuja obra sempre contou com a parceria ativa do leitor/espectador.

Por isso, o livro vai muito além de uma retrospectiva artística. A profusão de projetos esboçados e inacabados gera a sensação de estarmos ­diante do que ­Umberto Eco classificou, há mais de meio século, como obra aberta. ­Fronteira Híbrida é um catálogo do que Luiz Gê ainda pretende realizar. •


VITRINE


O enredo de A Boa Sorte (Todavia, 256 págs., 69,90 reais) é descrito em forma de pergunta: “O que leva um homem a saltar de um trem em uma cidade sem maiores atrativos, que não era seu destino original, e se esconder ali?” A autora, a espanhola Rosa Montero, escreveu antes A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver.

Diatribe de Amor Contra um Homem Sentado, a única peça teatral de Gabriel García Márquez, é lançada pela primeira vez no Brasil (Record, 96 págs., 54,90 ­reais). O texto, de 1987, põe em cena uma mulher que, ao completar 25 anos de casada, diz: “Nada se parece tanto com o inferno como um casamento feliz!”

A Editora 34 lança uma edição bilíngue dos poemas escritos por Blaise Cendrars durante sua passagem pelo Brasil, na década de 1920. Com tradução de Samuel Titan Jr., Diário de Bordo (208 págs., 65 reais) reúne, além dos poemas publicados no livro original, outros tantos, dispersos, que tratam do País.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1212 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Traços polivalentes”

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