Cultura
Todos os filmes do presidente
As sessões no Alvorada integram um movimento mais amplo de promoção do cinema pelo atual governo


Na quinta-feira 7, o sol ainda não tinha se posto e a lua já aparecia do outro lado do horizonte quando a equipe de O Agente Secreto chegou ao Palácio da Alvorada, em Brasília. O céu, tingido de vários tons de laranja, servia de fundo para uma cena que, apesar de se passar na residência oficial do presidente da República, tinha mais ar de festa do que de pompa e circunstância.
Duplamente premiado no Festival de Cannes em maio – com as Palmas de melhor direção para Kleber Mendonça Filho e de melhor ator para Wagner Moura –, o filme teve, naquela noite, sua primeira exibição no País.
“Sou um artista brasileiro, de Pernambuco, e é muito bom estar sendo recebido nesta casa”, disse o cineasta ao microfone. “Este evento mostra o respeito deste governo pela cultura.” Em 2016, ao apresentar Aquarius em Cannes, Kleber Mendonça Filho ergueu uma faixa em que se lia “Fora Temer”. Em 2021, como membro do júri do mesmo festival, ele disse à imprensa internacional que o ex-presidente Jair Bolsonaro boicotava a cultura.
Nos governos de Michel Temer e Bolsonaro, as sessões do Cine Alvorada, que haviam se tornado rotineiras nos dois primeiros mandatos de Lula, foram interrompidas. Embora não exibisse filmes, Bolsonaro chegou a substituir o estofado vermelho das cadeiras por um tecido azul. Ocasionalmente, ele usava o espaço para cultos religiosos.
A apresentação de O Agente Secreto, precedida por Ainda Estou Aqui, em fevereiro deste ano, e O Último Azul, em julho, compõe um processo de intensificação, por parte do governo, da promoção do cinema brasileiro. Na sessão da semana passada, foi apresentada, antes do longa-metragem, a campanha de valorização dos filmes brasileiros que passará a circular nacionalmente.
Na véspera da projeção festiva, mais de mil cineastas haviam enviado uma carta ao governo pedindo a regulação do streaming
Um dia antes da sessão, os cineastas brasileiros haviam publicado uma carta, endereçada a Lula, na qual pediam a sensibilização do governo para a urgência da regulação dos serviços de streaming no País.
Márcio Tavares, secretário-executivo do MinC, conta que a retomada da projeção de filmes foi um pedido feito por Lula assim que ele voltou ao Planalto, em 2023. Mas atender ao desejo do presidente não foi simples.
“A sala estava com muitos problemas estruturais”, conta Tavares. “Essa sala está no projeto original do prédio para ser um lugar onde os presidentes poderiam ver filmes com a família e amigos. Mas os projetores e o sistema de som eram muito antigos, e não havia condições para se fazer uma sessão de qualidade.”
A reforma contou com a consultoria da Associação Brasileira das Empresas Cinematográficas (Abraplex), que inclui grupos como Cinemark e Cinépolis. A reinauguração do espaço aconteceu em novembro de 2023, com Saudosa Maloca, que conta a história de Adoniran Barbosa.
Os planos de se estabelecer uma rotina de exibição não foram postos em prática em 2024, segundo Tavares, por conta da agenda internacional intensa do presidente. A ideia é que, a partir de agora, as sessões aconteçam a cada dois meses.
Se esta sala falasse… Após ser exibido, no Cine Alvorada, para FHC, Cidade de Deus (2002) teve a classificação etária alterada de 18 para 14 anos. Narradores de Javé foi um dos títulos das sessões quinzenais que aconteciam em 2003 – Imagem: Redes Sociais
Os convites ficam a cargo da Secretaria de Comunicação do governo, e a primeira-dama tem um papel ativo na organização. Foi dela, por exemplo, a sugestão para que a equipe do filme levasse ao Alvorada o grupo de frevo recifense Guerreiros do Passo, o mesmo que se apresentou em Cannes.
A cerimônia divide-se entre uma parte pública e outra privada.
A parte pública, na área externa da residência, incluiu um pequeno cortejo da equipe do filme – parte do elenco, distribuidores e assessoria de imprensa – acompanhada do grupo de frevo. Na sequência, Lula cumprimentou jornalistas e fotógrafos. Depois de muitas fotos, pegaram o microfone a primeira-dama, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, Kleber Mendonça, Wagner Moura e o presidente Lula.
A parte privativa constituiu-se de um coquetel servido antes e depois da sessão, de conversas informais, abraços e fotos. Todas as fotos são, porém, oficiais, uma vez que os convidados têm de entregar seus celulares na entrada e só podem pegá-los de volta ao sair.
A sessão acontece em uma sala pequena, com 30 grandes cadeiras que não se juntam como em uma sala de cinema comum. Elas ficam alinhadas, mas não presas umas às outras, e fazem parte do mobiliário original do edifício projetado por Oscar Niemeyer na década de 1950. Os lugares são previamente marcados em um mapa.
Ao lado do presidente Lula ficaram Janja e Mendonça, que, em alguns momentos, levantou-se para falar com o projecionista, provavelmente para pedir ajustes na projeção. Antes de entrar na sala, todos foram servidos de pipoca.
Sílvia Cruz, fundadora da Vitrine Filmes, distribuidora tanto de O Último Azul quanto de O Agente Secreto, e presente à sessão, diz que, mais que valorizar um filme em especial, o Cine Alvorada diz respeito a um todo: “Você ter um governo que se importa com as artes ajuda o povo a perceber a importância da cultura. Tem um simbolismo muito grande, que pode ajudar o público a ter orgulho do cinema brasileiro”.
A palavra orgulho foi usada por vários dos presentes, indicando ser essa a mensagem que o governo quer passar. A CartaCapital, a ministra Margareth afirmou: “Voltamos a viver em um País que valoriza e tem orgulho de sua própria cultura”.
Embora tenha se tornado um evento público apenas no primeiro governo Lula, a história das sessões presidenciais não começa ali. Em 2002, na divulgação de Cidade de Deus, a equipe do filme propôs uma exibição para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e sua mulher, Ruth Cardoso. FHC aceitou, e sugeriu que ela acontecesse na residência oficial.
Ao fim da sessão, ambos se disseram impressionados. No jantar oferecido em seguida, a equipe do longa-metragem comentou com a primeira-dama que o Ministério da Justiça havia estabelecido para o filme a classificação etária de 18 anos. Dona Ruth considerou a decisão um erro, pois aquela era uma história a ser mostrada nas escolas. Três dias depois, saiu a nova classificação: 14 anos.
Sob Bolsonaro, o estofado vermelho das cadeiras da sala foi substituído por um tecido azul
Naquele momento, estava em curso a campanha presidencial, com Lula disputando pelo PT e José Serra pelo PSDB. A pedido da equipe de Lula, o filme foi mostrado também para ele, no Centro Cultural São Paulo. A partir daí, tornou-se objeto de comentários do então candidato em comícios e entrevistas.
Quando Lula assumiu a Presidência, em 2003, o cinema brasileiro vivia um momento de grande entusiasmo. A Cidade de Deus seguiram-se outros sucessos, como Carandiru e Deus É Brasileiro, e uma série de produções de impacto.
Nesse ano, os títulos nacionais venderam 22 milhões de ingressos e responderam por 21,62% das bilheterias do País – uma participação de mercado que não voltaria a ser alcançada. Foi nesse contexto que Antonio Grassi, então presidente da Funarte, tomou para si a incumbência de aproximar o presidente do cinema e passou a realizar sessões quinzenais no Cine Alvorada.
Em algumas quinzenas, por problemas de agenda, não houve sessões, mas muitos filmes brasileiros passaram por lá, como O Homem Que Copiava, Amarelo Manga e Narradores de Javé.
A produtora Vânia Catani, de Narradores de Javé, então no início da carreira, conta que, no jantar após a sessão, ao ser colocada ao lado de Lula, achou que havia algum erro. “Aí ele me disse: ‘Eu já tive muitas vezes essa sensação de estar num lugar que não é meu’”, relembra ela, passadas duas décadas. No governo Dilma Rousseff, a produtora apresentou ali O Palhaço (2011). Naquele momento, as sessões eram esporádicas e não havia jantar depois da projeção.
Ato a um só tempo político e cultural, a exibição de filmes brasileiros no Palácio da Alvorada acaba por ser um reflexo direto das relações entre o cinema e o Estado – algo que, há um século, é constitutivo do cinema brasileiro. •
*A jornalista viajou a convite do MinC.
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Todos os filmes do presidente’
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