Cultura

Toca Raul!

Vi pessoalmente Raul pela primeira e última vez em 19 de fevereiro de 1987. Estava de pijama, cabelos desgrenhados, olhos inchados de tanto dormir

"Em 1987, Raul continuava aquela metamorfose ambulante de sempre mas admitia numa canção do novo disco que calejado, cansara de andar na contramão". Foto: capa do disco "O dia em que a Terra parou"
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O início. Quando ouvi Raul Seixas pela primeira vez, o mundo ardia em chamas. Tudo acontecia ao mesmo tempo. Paris vivia sua revolução de maio enquanto os Beatles voavam para a Índia em busca de paz. Luther King caía morto na sacada de um hotel em Memphis enquanto Bob Kennedy agonizava com dois tiros na cabeça num outro hotel em Los Angeles.

O inverno acabava em Praga e começava uma longa primavera. Um coração novo batia no peito do boiadeiro João Ferreira da Cunha enquanto na Cinelândia cem mil corações e mentes protestavam contra a ditadura e a repressão. Enfim, havia alguma coisa no ar além dos aviões sequestrados.

Raul, então Raulzito, ao lado dos Panteras Mariano Lanat, Carlos Eladio e Carbela era todo paz e amor no seu primeiro disco de vinil que tinha a cara do With The Beatles de John, Paul, George e Ringo. “Lucy in the Sky with Diamonds” na voz de Rauzito virou “Você Ainda Pode Sonhar”:

Pense num dia com gosto de infância


Sem muita importância procure lembrar


Você por certo vai sentir saudades


Fechando os olhos verá


Doces meninas dançando ao luar


Outras canções de amor


Mil violinos e um cheiro de flores no ar

A segunda vez que ouvi Raul foi já em Paris num longo inverno. Sua voz chegou numa fita cassete enviada por um caro amigo. Se em Paris se ouvia Edith Piaf e Jacques Brel, aqui na terra tinha muito samba, muito choro e rock and roll.  Puro “Ouro de Tolo”:

Eu devia estar contente


Porque eu tenho um emprego


Sou um dito cidadão respeitável


E ganho quatro mil cruzeiros por mês…

Eu devia agradecer ao Senhor


Por ter tido sucesso


Na vida como artista


Eu devia estar feliz


Porque consegui comprar


Um Corcel 73…

O fim. O fim aconteceu numa quinta-feira, 19 de fevereiro de 1987. Foi quando vi pessoalmente Raul pela primeira e última vez. Cheguei cedo em sua casa conforme o combinado mas esperei duas horas para que ele aparecesse na sala de pijama, cabelos desgrenhados, olhos inchados de tanto dormir.

Jurou que não bebia mais. Só suco de laranja, água mineral e algumas doses de Diempax, sob receita médica e controle absoluto da companheira Lena. O que havia acontecido com o maluco beleza? Estava lançando mais um disco de rock, um grito de guerra: Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!

Enquanto Raul não vinha, houve tempo necessário para observar as fotografias em preto e branco de Elvis Presley emolduradas e dependuradas nas paredes encardidas de uma casa meio decadente, meio underground, bem rock and roll.

Raul conversou durante mais de três horas comigo e com o repórter e poeta Ademir Assunção. Continuava aquela metamorfose ambulante de sempre mas admitia numa canção do novo disco que, calejado, cansara de andar na contramão.

Raulzito soltava pérolas enquanto o fotógrafo Juvenal Pereira o clicava com um pijama de bolinhas e uma escova numa boca cheia de dentes talvez esperando a morte chegar.

– Não quero ser John Lennon morto, John Wayne nem Tancredo.

– Durango Kid só existe no gibi.

– O rock morreu em 1959.

– A sociedade alternativa ainda bate no meu peito.

– Minha mãe queria que eu fosse presidente da República mas eu preferi juntar minha música com a metafísica.

– O meu novo disco é um tapa na cara desse grupo aí, os Parachoques do Fracasso.

– Até morrer vou continuar cuspindo na estrutura.

Dois anos e meio depois da entrevista Raul morreu. Cambaleante mas de pé. O meio? O meio está no filme de Walter Carvalho, um filme que ninguém pode perder.

 

O início. Quando ouvi Raul Seixas pela primeira vez, o mundo ardia em chamas. Tudo acontecia ao mesmo tempo. Paris vivia sua revolução de maio enquanto os Beatles voavam para a Índia em busca de paz. Luther King caía morto na sacada de um hotel em Memphis enquanto Bob Kennedy agonizava com dois tiros na cabeça num outro hotel em Los Angeles.

O inverno acabava em Praga e começava uma longa primavera. Um coração novo batia no peito do boiadeiro João Ferreira da Cunha enquanto na Cinelândia cem mil corações e mentes protestavam contra a ditadura e a repressão. Enfim, havia alguma coisa no ar além dos aviões sequestrados.

Raul, então Raulzito, ao lado dos Panteras Mariano Lanat, Carlos Eladio e Carbela era todo paz e amor no seu primeiro disco de vinil que tinha a cara do With The Beatles de John, Paul, George e Ringo. “Lucy in the Sky with Diamonds” na voz de Rauzito virou “Você Ainda Pode Sonhar”:

Pense num dia com gosto de infância


Sem muita importância procure lembrar


Você por certo vai sentir saudades


Fechando os olhos verá


Doces meninas dançando ao luar


Outras canções de amor


Mil violinos e um cheiro de flores no ar

A segunda vez que ouvi Raul foi já em Paris num longo inverno. Sua voz chegou numa fita cassete enviada por um caro amigo. Se em Paris se ouvia Edith Piaf e Jacques Brel, aqui na terra tinha muito samba, muito choro e rock and roll.  Puro “Ouro de Tolo”:

Eu devia estar contente


Porque eu tenho um emprego


Sou um dito cidadão respeitável


E ganho quatro mil cruzeiros por mês…

Eu devia agradecer ao Senhor


Por ter tido sucesso


Na vida como artista


Eu devia estar feliz


Porque consegui comprar


Um Corcel 73…

O fim. O fim aconteceu numa quinta-feira, 19 de fevereiro de 1987. Foi quando vi pessoalmente Raul pela primeira e última vez. Cheguei cedo em sua casa conforme o combinado mas esperei duas horas para que ele aparecesse na sala de pijama, cabelos desgrenhados, olhos inchados de tanto dormir.

Jurou que não bebia mais. Só suco de laranja, água mineral e algumas doses de Diempax, sob receita médica e controle absoluto da companheira Lena. O que havia acontecido com o maluco beleza? Estava lançando mais um disco de rock, um grito de guerra: Uah-Bap-Lu-Bap-Lah-Béin-Bum!

Enquanto Raul não vinha, houve tempo necessário para observar as fotografias em preto e branco de Elvis Presley emolduradas e dependuradas nas paredes encardidas de uma casa meio decadente, meio underground, bem rock and roll.

Raul conversou durante mais de três horas comigo e com o repórter e poeta Ademir Assunção. Continuava aquela metamorfose ambulante de sempre mas admitia numa canção do novo disco que, calejado, cansara de andar na contramão.

Raulzito soltava pérolas enquanto o fotógrafo Juvenal Pereira o clicava com um pijama de bolinhas e uma escova numa boca cheia de dentes talvez esperando a morte chegar.

– Não quero ser John Lennon morto, John Wayne nem Tancredo.

– Durango Kid só existe no gibi.

– O rock morreu em 1959.

– A sociedade alternativa ainda bate no meu peito.

– Minha mãe queria que eu fosse presidente da República mas eu preferi juntar minha música com a metafísica.

– O meu novo disco é um tapa na cara desse grupo aí, os Parachoques do Fracasso.

– Até morrer vou continuar cuspindo na estrutura.

Dois anos e meio depois da entrevista Raul morreu. Cambaleante mas de pé. O meio? O meio está no filme de Walter Carvalho, um filme que ninguém pode perder.

 

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