Cultura

Textos de Carlos Marighella são reunidos em novo livro

Ubu Editora lança Chamamento ao Povo Brasileiro, uma reunião de ensaios, cartas, manifesto e poemas

O volume reedita o raro texto Por Que Resisti à Prisão, de 1965
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A Ubu Editora lança Chamamento ao Povo Brasileiro, uma reunião de ensaios, cartas, manifesto e poemas de Carlos Marighella. O livro de 320 páginas é luminar em ao menos dois sentidos. O primeiro por permitir que o pensamento do “inimigo número 1” da ditadura civil-militar volte a circular, evidenciando como parte essencial da história brasileira ainda é desconhecida pela maioria. E também pela trágica atualidade dos escritos, que giram em torno de 1929 a 1969, mas abrigam paralelismos sem precedentes com o que está acontecendo no Brasil de hoje.

O livro contém a íntegra de Por Que Resisti à Prisão, publicado em 1965, mas de difícil acesso desde então. Esse texto tinha a apresentação do crítico literário Antonio Candido e prefácio de Jorge Amado. A obra reconstitui, nas palavras de Marighella, a sua espetaculosa prisão no cinema Eskey-Tijuca, no Rio, quando foi baleado por policiais do Departamento de Ordem Política e Social em uma matinê com a sala cheia de crianças.

Àquela altura, maio de 1964, ele sabia que o aparato da ditadura seria implacável. Sem que pudesse ser feita uma acusação contra ele, ficou detido como o “depositário 523”, como um “objeto depositado no almoxarifado”. É em Por Que Resisti à Prisão que ele deixa clara sua opção pela luta armada. Antecipa: “Os brasileiros estão diante de uma alternativa. Ou resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril ou se conformam com ela. O conformismo é a morte. No mínimo, viver de joelhos. Sofrer humilhações sem fim”.

Organizado pelo filósofo Vladimir Safatle, Chamamento ao Povo Brasileiro deixou de fora o Manual de Guerrilha Urbana, que deve ser lançado em 2020. Há uma boa justificativa: se fosse incluído, o texto-fetiche de Marighella, tido como referência para guerrilheiros do mundo todo, eclipsaria o restante da obra. Sem essa parte, a coletânea torna-se, de fato, mais robusta e elucidativa. Há um longo e penoso caminho percorrido por Marighella antes da opção pela luta armada. E os textos, embora não sejam inéditos, permitem reconstituir um dos personagens mais enigmáticos do Brasil. “Em princípio, tudo é do mais difícil acesso. Houve um total apagamento de sua história e, ao não circular esses escritos pelas escolas e universidades, não se discute, não se debate”, explica Safatle, que teve acesso à farta documentação acumulada por cerca de três décadas pelo jornalista Mário Magalhães, autor da biografia Marighella, o Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo, em 2012. 

“Conheço todos os textos do Marighella que expõem o pensamento dele, uma reflexão sobre a política, e são sempre voltados para a ação política”, esclarece Magalhães. Marighella, nascido em 1911, cursava engenharia na Escola Politécnica da Bahia quando foi preso pela primeira vez, em 1932, durante um ato pela constitucionalização do País. Naquele ano, ingressou no Partido Comunista. Quatro anos mais tarde, quando ocupa um papel de destaque no partido, foi preso e torturado por Filinto Müller, chefe da polícia política de Getúlio Vargas. Em 1937, voltou a ser preso, passando pelos presídios de Fernando de Noronha e da Ilha Grande. Era de cela em cela que ele escrevia poesias: Assim como o urubu há no alto muita gente/ poderosa a fartar que, entanto, moralmente/ só consegue viver à custa de carniça. Foi anistiado em 1945.

“Em princípio, tudo é do mais difícil acesso. Houve um total apagamento de sua história”, afirma Safatle

Naquele ano, Marighella foi eleito deputado federal. Tinha ao seu lado, como deputados constituintes do PCB, Jorge Amado, Claudino Silva, João Amazonas e Luiz Carlos Prestes, eleito senador. Em 1947, o PCB teve o registro cassado e o partido passou para a clandestinidade. Até o golpe de 1964, Marighella atuou em publicações jornalísticas. Foi quando seus escritos passaram a servir como referência para uma reflexão combativa contra a ditadura. 

“A subestimação do perigo de direita no panorama político brasileiro foi fruto do reboquismo e da ilusão no governo. Acreditava-se que a burguesia seguiria o caminho das reformas pacíficas sob a pressão do movimento de massa, e que a direita não se levantaria. E que, se isto acontecesse, a burguesia tomaria a iniciativa da resistência e do combate aos golpistas”, escreveu na revista Problemas da Paz e do Socialismo, editada por ele. É nesse texto que Marighella se mostra descrente do movimento de resistência pelas vias institucionais. “Nosso objetivo tático fundamental (…) está em substituir o atual governo por outro que assegure as liberdades e faça uma abertura para o progresso” e “para a ditadura as eleições representam um meio de institucionalizar o golpe” são alguns desses trechos. Marighella defendia que uma revolução popular partiria dos movimentos campesinos e operários e não escondia sua oposição ao imperialismo dos EUA.

Chamamento ao Povo Brasileiro de Carlos Marighella, Ubu Editora, 320 páginas (Foto: Reprodução)

Perseguido pela ditadura, o comunista teve ainda de enfrentar uma luta interna contra o próprio partido, liderado por Luiz Carlos Prestes. Em cartas internas e também a Fidel Castro, revelou por que não acreditava na resistência pacífica. Para Marighella, a política das esquerdas tinha se resumido a uma dependência em relação ao governo de João Goulart. Ao ser expulso do PCB, fundou em 1969 a Ação Libertadora Nacional, um dos grupos armados de oposição ao regime militar. Foi assassinado em 4 de novembro de 1969. Para Safatle, Marighella explicita o quanto a história brasileira gira em torno de si mesma, no pior sentido. “O Brasil é um país da repetição. Praticamente voltamos aos mesmos personagens dos anos 1960, como uma fantasmagoria que se repete”, resume. 

Um outro livro, lançado agora pela Editora Xapuri, se soma na recuperação do personagem. Carlos Marighella, Comunista e Poeta de Todas as Horas reúne textos, poemas e fotos sobre as quatro prisões do líder comunista, em 1932, 1936, 1939 e 1964. A obra de 96 páginas é de autoria de Gilney Viana (ex-deputado pelo PT) e Iara Xavier Pereira, filha de Zilda, uma das companheiras de Marighella, ambos militantes da ALN. “Marighella tinha uma teoria social sobre a revolução brasileira pelas esquerdas. Embora tenha morrido como líder guerrilheiro, e isso impacta, ele foi um teórico, um político ativo e atuante”, lembra Viana. “O grande mérito desses livros é trazer o pensamento do Marighella em primeira pessoa”, acrescenta o biógrafo Mário Magalhães. “Os textos dele em defesa da liberdade democrática e das conquistas sociais se renovam no Brasil de hoje.”

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