Cultura

Tempo, tempo, tempo

O que acontece quando a gente começa a revisitar nossa vida?

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Outro dia, minha filha de 26 anos veio aqui em casa pra jantar com a gente. Depois de comer uns legumes assados no forno e tomar uma taça de vinho, ela foi procurar alguma coisa nos Cadernos da Família, aqueles diários ilustrados que faço desde que o meu primeiro filho nasceu, lá em Paris, nos anos 1970.

Acho que ela queria uma foto antiga do tempo da Escola Grão de Chão, do Ibeji, do Colégio Equipe, da República Lago ou coisa parecida. São mais de duzentos cadernos e ela começou a folhear um, aleatoriamente. E veio o espanto:

– Nossa! Como eu estou velha!

Ela foi passando página por página e em cada uma que parava, vinha a surpresa.

– Quando eu nasci era cruzeiro, não tinha nem o real ainda.
Virava a página e mais espanto.

– Quando eu nasci, estavam lançando a nota de 5 mil cruzeiros com a figura do Carlos Gomes!

– Meu! Tinha uma TV chamada Manchete e a novela Pantanal estava batendo a Globo!

– Imagine! Ainda existia a União Soviética.

– O técnico da seleção brasileira era um tal de Sebastião Lazaroni.

– Ainda existia a Alemanha Oriental e aqui está dizendo que a DDR foi autorizada a receber marcos da Alemanha Ocidental.

– Gente, não existia o euro!

Se ela estava se sentindo uma velha, imagine eu, o pai, ali ao seu lado?

– Olha só! O Cazuza dando uma entrevista e dizendo que vai voltar a compor.

– O dólar no black chega a 55 cruzeiros! Existia um dólar chamado de black?

Ela virava a página e…

– Gente! A MTV estava indo ao ar pela primeira vez!

– Que isso? Um recorte da revista do Jornal do Brasil dizendo que tem uma nova fruta – o kiwi – chegando ao Brasil.

– Poxa! Uma tirinha do Glauco, na Folha.

A cada página que ela passava, ia se sentindo mais e mais velhinha. Ficou chocada ao ver colados ali no caderno, alguns telegramas, uma foto do Castelo Ratimbum e umas passagens da Transbrasil. E se espantou:

– Olha só como eram as passagens de avião, cheia de folhas…

Ela ficou pensativa ao ler que o grande hit do momento era a música Nothing Compares 2 You, da Sinned O’Connor.

– É legal, pai?

Era um espanto atrás do outro.

– Putz! A Galinha Azul da Maggi! Eu me lembro dela.

Mal sabia a minha filha que quando ela nasceu não tinha celular, não tinha Internet, não tinha WhatsApp, não tinha Waze, não tinha Instagram e a coqueluche era o fax, o microondas e a secretaria eletrônica.

Na última página do primeiro caderno que folheou, ela disse:

– Meu Deus do céu! Quando eu nasci o presidente era o Fernando Collor e o vice era o Itamar Franco!

Fiquei quietinho no meu canto e nem comentei nada. Já pensou se eu falo com ela que quando eu nasci o presidente era o Getúlio Vargas e o Brasil estava levando aquele segundo gol do Uruguai no Maracanã?

 

 

 

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