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Telas em transição

No palco do Rio 2C, na Cidade das Artes, a Globo procura desconstruir o discurso de brasilidade da Netflix

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Espelhos. No palco, Luciano Huck disse que a plateia podia filmar e fotografar o que quisesse: “O conteúdo é todo de vocês”. Antes, a Netflix, na apresentação conduzida pelos atores Christian Malheiros e Juliana Paes, havia pedido que nada ali fosse registrado – Imagem: André Luiz Mello/Rio2C e Nat Odenbreit/Rio 2C
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No início da manhã da quarta-feira 5, Joelma Gonzaga, secretária do Audiovisual do Ministério da Cultura, falou para uma plateia atenta, no Rio 2C, sobre a regulação do streaming. “É preciso garantir ao produtor independente a propriedade intelectual e patrimonial das obras. “Qualquer projeto (de lei) precisa partir desse ponto”, disse. “A questão da regulação é uma questão de soberania nacional.”

Já perto da hora do almoço, foi a vez de a Netflix subir ao Global Stage, principal palco do Rio 2C, encontro do setor criativo que levou mais de 50 mil ­pessoas à Cidade das Artes, na Barra da Tijuca, na semana passada.

Em meio ao trâmite de dois Projetos de Lei que dispõem sobre as regras de apoio das plataformas à produção independente brasileira, a Netflix inseriu, em sua apresentação, respostas diretas e indiretas ao debate em torno do significado de “obra brasileira” no contexto cada vez mais globalizado do audiovisual produzido para os serviços de vídeo sob demanda.

Coube a Christian Malheiros, ator de Sintonia, a série brasileira mais vista da Netflix, o papel de mestre de cerimônias principal. Em 2023, no próprio Rio 2C, Sintonia havia sido citada por Kondzilla. Ele, então, lamentou o fato de, apesar de ter sido desenvolvida por sua produtora em parceria com a Los Bragas, a série ter se tornado uma propriedade da Netflix – que financiou a produção e detém os direitos sobre a sua exploração e continuidade.

As duas empresas tentaram ainda se mostrar parceiras das produtoras independentes

Este ano, ao apresentar Senna, a Netflix resolveu, ela mesma, levar ao palco Fabiano e Caio Gullane, produtores da série, donos da ideia, mas não dos direitos patrimoniais. E Fabiano relatou que, até a Netflix ter abraçado o projeto, passou 12 anos rodando o mundo para tentar viabilizá-lo. A série, que estreia no segundo semestre, envolveu a contratação de atores de 16 países e a construção, na Argentina, de 22 réplicas de carros de Fórmula 1.

Além de falar das duas séries, a Netflix, pela voz de suas executivas e da atriz Juliana Paes, anunciou um reality musical, Nova Cena, com batalhas de rimas; a novela, também chamada de série melodramática, Pedaço de Mim; os filmes Caramelo, protagonizado por um cachorro, e O Diário de Um Mago, baseado no best seller de Paulo Coelho; e as minisséries Pssica e Os Quatro da Candelária.

Para falar de Pssica, baseada em um livro do paraense Edyr Augusto, foram recrutados Andrea Barata Ribeiro, sócia de Fernando Meirelles na O2 Filmes, e o roteirista Bráulio Mantovani, que, em um vídeo, elogia os apontamentos feitos pela Netflix no roteiro. Neste caso, o recado era que, sim, a empresa intervém criativamente no que produz, mas que isso não é necessariamente ruim.

Em outro painel, Gilberto Toscano, diretor sênior de Assuntos Jurídicos e de Negociações da Netflix Brasil, buscou deixar claro que firma outros tipos de parcerias com os produtores brasileiros independentes – para além dessas nas quais as empresas figuram como prestadoras de serviço. Há tanto o licenciamento de obras concluídas para o catálogo quanto os pré-licenciamentos, também chamados de pré-venda. Esse segundo tipo de contrato é assinado antes do filme pronto e ajuda a compor o orçamento de produção. Toscano contou que esse modelo foi adotado, recentemente, em projetos de dois diretores de perfil autoral e de fora do eixo Rio–São Paulo: Kleber Mendonça Filho e André Novais Oliveira.

Governo. Antes de Netflix e Globo falarem, Joelma Gonzaga, do MinC, defendeu a regulação do streaming – Imagem: Clauber Cleber Caetano/MC

A resposta ao discurso da Netflix – de adesão às histórias brasileiras e proximidade com produtores independentes – viria no fim do dia, no painel Acontece Globo: Um Compromisso com o Brasil. Nele, o maior grupo de mídia nacional ironizou o concorrente e puxou para si a legitimidade dessa relação entre audiovisual e aquilo que, um dia, foi chamado de identidade nacional.

A primeira cutucada foi dada assim que Luciano Huck entrou no Global Stage, dizendo que tudo podia ser fotografado e filmado. A Netflix, antes, havia pedido para que nada fosse registrado. “O conteúdo é todo de vocês”, afirmou. Era só o começo.

Frases como “A Globo é parte da sociedade brasileira”; “A Globo trabalha com 170 produtores independentes (…) e dá liberdade de criação para esses produtores – não é todo mundo que faz isso, não”; ou “80% da programação da TV Globo é de conteúdo brasileiro” seriam ditas por Amauri Soares e Manuel Belmar, executivos que dividiram o palco com Huck.

De acordo com o Panorama do Mercado de Vídeo por Demanda no Brasil, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), as obras brasileiras corresponderam, em 2023, a apenas 3,8% das 6,7 mil obras disponíveis na Netflix; no GloboPlay, esse porcentual foi de 35,2% entre 3,4 mil títulos. Ainda de acordo com o estudo, há, no catálogo da Netflix, 21 originais ante 234 títulos de produção independente; e, no do GloboPlay, 656 produções não independentes e 510 independentes.

Além de chamar para si a verdadeira brasilidade – postura adotada em outros momentos-chave da regulação do setor –, a Globo relativizou a força dos novos players na disputa pelo tempo das pessoas .

Segundo Soares, uma novela da Globo tem uma audiência maior do que a soma das três séries mais consumidas na “maior plataforma de streaming no mundo” e um filme, na Tela Quente, é visto por até 40 milhões de pessoas simultaneamente. Nem o alcance global das plataformas ficou de fora do contra-ataque: “A gente viaja o mundo há décadas”.

Elisabetta Zenatti, vice-presidente de conteúdo da Netflix Brasil, deu o nome de “efeito Netflix” ao engajamento que mobiliza meio bilhão de pessoas ao redor do mundo. Soares, por sua vez, criou uma diferenciação entre o que chamou de comunicação aberta versus comunicação algoritmizada: “Temos uma missão antialgorítmica. Gosto de pensar a televisão como a maior praça pública do Brasil”.

Netflix e Globo, as duas principais marcas do mercado de produção e licenciamento de filmes e séries no Brasil, ajudam a delinear as novas feições da produção, distribuição, exibição e do consumo audiovisual. Mas o retrato desse setor, do qual fazem parte algumas das mais valiosas empresas do mundo – como Apple e Amazon – se completaria com outros players que, com seus negócios digitais, influenciam todos os demais modelos.

No mesmo espaço, YouTube e CazéTV trataram de fenômenos digitais incontornáveis

Casemiro, criador da CazéTV, e Mary Ellen Coe, executiva do YouTube, foram dois dos que trataram de fenômenos digitais incontornáveis. A audiência da Globo pode não ser ameaçada, numericamente, pela da Netflix; mas é pela do YouTube. E a CazéTV, com suas transmissões de futebol e, este ano, com a cobertura dos Jogos Olímpicos de Paris, também se tornou um concorrente significativo.

Mas de que forma isso tudo se conecta ao tema da regulação, que deu a largada aos debates sobre audiovisual no Rio 2C?

No painel Perspectivas da Indústria: Como Alcançar a Sustentabilidade Econômica no Novo Ecossistema de Mídia e Entretenimento?, M.M. Izidoro, produtor, roteirista e diretor, deu uma das respostas possíveis. “A produção foi bem resolvida. Mas como a gente vende o que produz, especialmente nesse cenário de extrativismo cultural, onde as empresas gringas chegam aqui e falam: ‘Eu produzo o seu sonho, mas vou levá-lo comigo’.”

Izidoro referia-se, justamente, aos direitos patrimoniais. “Os maiores IPs ­(intellectual property) infantis estão vindo do YouTube”, disse. “A gente acha que todo mundo está na Netflix, mas não é verdade. No Brasil, a grande maioria está na tevê aberta, no WhatsApp e no YouTube.”

Nesse contexto, um dos papéis da regulação é incorporar as plataformas ao ecossistema de financiamento público e criar regras que facilitem a negociação dos direitos. Rafael Lazarini, CEO do Rio 2C, diz que uma das coisas que o agradou nesta edição foi ter ouvido “conversas mais francas, mesmo em assuntos delicados”. Dessas conversas, emergiram as nuances desse universo no qual estão em disputa os direitos de quem produz e a atenção de quem vê. •


OS TROPEÇOS DO CINEMA ARGENTINO

O produtor de O Segredo dos Seus Olhos e Relatos Selvagens diz que a crise do financiamento de filmes se aprofundou, mas antecede Milei

Expertise. Argentina, 1985 é uma das produções de Axel Kuschevatzky, que participou de um painel no Rio 2C na semana passada – Imagem: Cadu Pilotto/Rio2C e Prime Video

Produtor de filmes marcantes do cinema argentino, como O Segredo dos Seus Olhos (2009), Relatos Selvagens (2014) e Argentina, 1985 (2022), Axel Kuschevatzky esteve no Rio 2C para participar de um painel sobre coproduções internacionais. Após o debate, do qual participaram também produtores brasileiros, ­Kuschevatzky concedeu esta entrevista a CartaCapital.

CartaCapital: As notícias que nos chegam dão conta de que o cinema argentino passa por uma crise de financiamento. Isso começa com o governo Milei ou havia uma crise
que precedia a atual?
Axel Kuschevatzky: Esse processo vem de antes. A Argentina não tem, por exemplo, um sistema de tax ­rebate (abatimento de imposto) nacional. Só Buenos Aires tem. Além disso, não há investimentos privados no cinema e os recursos do Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (INCAA) estão congelados.

CC: O fundo público vinha funcionando bem ou passava por problemas? Pergunto porque, no Brasil, quando Bolsonaro assumiu, havia uma crise no Fundo Setorial do Audiovisual – que acabou por servir também de pretexto para a paralisia.
AK: Na Argentina, o governo também atribui a interrupção a problemas de ordem administrativa. E, sim, a crise do financiamento público foi gradual, e começou a aprofundar-se há uns seis anos. O fundo do INCAA não acompanha a inflação. Produzimos 200 filmes por ano, mas 95% das bilheterias ficam concentradas em cinco títulos. Então, temos uma tempestade perfeita. Há dois meses, sob a alegação de que se organiza um novo plano de fomento, não são liberados recursos.

CC: Qual a fonte dos recursos desse fundo?
AK: São duas origens: 10% dos ingressos vendidos em salas de cinema e 25% do valor das licenças que as televisões aberta e fechada pagam aos governos.

CC: Na Argentina, plataformas de streaming também não contribuem para o fundo público do audiovisual?
AK: Não. E, neste momento, não temos ambiente político para pensar em uma regulação.

CC: No Brasil, um dos pontos centrais do debate sobre regulação são os direitos de propriedade. Como são os acordos que a sua empresa tem feito com as plataformas?
AK: Licenciamos filmes prontos; atuamos como prestadores de serviços em obras originais das plataformas; e, sobretudo, tentamos produzir com eles mantendo alguma participação no IP (intellectual property), mesmo que não majoritária.

CC: Sem regulação, como vocês negociam isso?
AK: Pedimos! (risos) Do meu ponto de vista, o Brasil tem um enorme potencial, mas, para fortalecer o seu cinema, precisa se internacionalizar. E a internacionalização tem a ver também com um código narrativo. Nós, quando começamos um projeto, discutimos como fazer para que o filme chegue a todo mundo e se conecte com diferentes audiências. É um trabalho longo, e que passa pelo desejo de se internacionalizar – sem que com isso se perca a identidade.

Publicado na edição n° 1315 de CartaCapital, em 19 de junho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Telas em transição’

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