Cultura

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Orlando Margarido escreve sobre os filmes “Os Descendentes”, “Nós precisamos falar sobre o Kevin” e “As Praias de Agnes”

Os Descendentes, um dos filmes indicados ao Oscar de melhor filme
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Legado incômodo

OS DESCENDENTES

Alexander Payne

 

Há um empenho, senão original, ao menos incomum de Os Descendentes em contornar os conceitos tradicionais da narrativa hollywoodiana. Logo no início é determinada a situação dramática que põe de cabeça para baixo a vida de Matt King (George Clooney). Sua mulher está em coma no hospital e, se saberá depois, desenganada. A razão, um acidente durante uma saída de barco, é apresentada também de forma trivial, ao mesmo tempo que se localizam os demais personagens centrais, a filha pequena insubordinada e sua irmã adolescente indócil e reclusa numa escola disciplinar. Matt terá de lidar com as exigências delas e novas revelações que o confrontam com a realidade de seu casamento. A narrativa do diretor Alexander Payne, nome antes independente alçado ao sucesso com Sideways, não abandona de todo os expedientes elementares de uma história sugerida como peça do destino, mas retirada de um romance. Nesse contexto, o cenário e suas configurações são importantes. Estamos no Hawai, arquipélago pouco filmado na atualidade, e onde a noção paradisíaca parece tudo englobar. Daí o contraste com o momento do protagonista, em especial porque como advogado, herdeiro de uma antiga família local, deve também se debater com a venda de uma das últimas propriedades do clã para um investimento de luxo. São segmentos dramáticos que juntos, familiar e de negócios, constroem um quadro de permanente tensão do personagem, mas sem perder de vista humor e irreverência. As leituras, assim, podem variar de um filme menos convencional para não mais do que uma história bem contada com frescor, o que parece se fortalecer com as indicações ao Oscar de Melhor Filme, Diretor e Ator.

 

 

 

 

 

 

Sem chance de reparação

 

NÓS PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN

Lynne Ramsay

Há uma cena desconcertante em Nós Precisamos Falar sobre o Kevin. Uma mulher aproxima-se da personagem de Tilda Swinton, a esbofeteia e inquire como ousa sair às ruas. Não sabemos ainda o que Eva, suposta vítima, fez para merecer tal reação, mas uma estranha rotina já se sublinhou. Eva mora numa casa em estado precário, dirige um carro em pior situação ainda e suas atitudes são de quem deseja passar despercebida numa pequena cidade. Uma ironia, entre outras, quando é Tilda a emprestar altivez e altura à protagonista. Ao encontrar sua algoz, está prestes a entrar num escritório para pedir um emprego abaixo de suas credenciais. Eva quer reconstruir a vida depois de uma tragédia. Não perpetrada por ela, ao menos diretamente, mas pelo filho adolescente que provocou uma chacina na escola local com flechas de tiro ao alvo. Um drama que, ao entrar em cartaz na sexta 27, dispensa lembranças de veracidade e repercussão no cinema. Gus Van Sant e Michael Moore já abordaram tais fatos recorrentes, não só nos Estados Unidos, mas no mundo, Brasil incluído. O que talvez tenhamos pela primeira vez nesse contundente filme de Lynne Ramsay é a perspectiva de quem ficou imerso na culpa, ou seja, os pais. Enquanto acompanhamos a tentativa de reerguimento de Eva, a vemos na convivência difícil com Kevin (Ezra Miller) na adolescência, conflito originado na gestação, quando questionava a maternidade ao marido insistente (John C. Reilly). O garoto odeia a mãe, não consegue lidar com a rejeição e a via escolhida, sugere o filme, é o radicalismo. Por se ater a um universo


de família desestruturada o drama faz sua única concessão, deixando de investir numa leitura mais ampla. Ainda sim, impacta como um pesadelo.

 

 Memórias de Espírito

AS PRAIAS DE AGNÈS

Agnès Varda

Se eu fosse cortada em dois, vocês veriam o mar no meio de mim; eu amo a horizontalidade da praia, que é a horizontalidade que vejo também no cinema.” As palavras são da octogenária Agnès Varda em seu documentário que estreia tardiamente na sexta 27 apenas no CineSesc. É uma maneira poética, como sempre se dá no caso desta realizadora belga herdeira da Nouvelle Vague, de justificar o título As Praias de Agnès, de 2008. Em 1991, ela assinou um bonito tributo ao marido recém-falecido, Jacques Demy, o Jacquot de Nantes. Agora é a vez de retomar sua própria memória, e ainda em plena forma e com disposição invejável, numa seleta de lembranças que dramatiza em cenas irreverentes, imagens de arquivo, cenas de filmes, conversas com amigos e, como é habitual, sua fina autoironia.

Essa memória parte da cidade litorânea de Sète, no sul da França, onde Varda se instalou com a família e passou a infância. A partir daí, avança para a iniciação no cinema, depois de experiências na fotografia, relembra o companheiro de longa trajetória e de uma divertida passagem com Demy em Hollywood, onde foi convidado a filmar. Um jovem e desconhecido ator foi por eles descartado num teste com a justificativa de que não tinha futuro no cinema. Era Harrison Ford. No diálogo com amigos, um dos mais espirituosos é com Chris Marker. Como esse detesta aparecer, quanto mais dar entrevista, Varda utiliza do subterfúgio do amor de ambos pelos gatos. E passeia pelas ruas de Paris carregando um enorme display em forma de felino, com quem conversa alegremente. Varda é uma personagem de si mesma.

Legado incômodo

OS DESCENDENTES

Alexander Payne

 

Há um empenho, senão original, ao menos incomum de Os Descendentes em contornar os conceitos tradicionais da narrativa hollywoodiana. Logo no início é determinada a situação dramática que põe de cabeça para baixo a vida de Matt King (George Clooney). Sua mulher está em coma no hospital e, se saberá depois, desenganada. A razão, um acidente durante uma saída de barco, é apresentada também de forma trivial, ao mesmo tempo que se localizam os demais personagens centrais, a filha pequena insubordinada e sua irmã adolescente indócil e reclusa numa escola disciplinar. Matt terá de lidar com as exigências delas e novas revelações que o confrontam com a realidade de seu casamento. A narrativa do diretor Alexander Payne, nome antes independente alçado ao sucesso com Sideways, não abandona de todo os expedientes elementares de uma história sugerida como peça do destino, mas retirada de um romance. Nesse contexto, o cenário e suas configurações são importantes. Estamos no Hawai, arquipélago pouco filmado na atualidade, e onde a noção paradisíaca parece tudo englobar. Daí o contraste com o momento do protagonista, em especial porque como advogado, herdeiro de uma antiga família local, deve também se debater com a venda de uma das últimas propriedades do clã para um investimento de luxo. São segmentos dramáticos que juntos, familiar e de negócios, constroem um quadro de permanente tensão do personagem, mas sem perder de vista humor e irreverência. As leituras, assim, podem variar de um filme menos convencional para não mais do que uma história bem contada com frescor, o que parece se fortalecer com as indicações ao Oscar de Melhor Filme, Diretor e Ator.

 

 

 

 

 

 

Sem chance de reparação

 

NÓS PRECISAMOS FALAR SOBRE O KEVIN

Lynne Ramsay

Há uma cena desconcertante em Nós Precisamos Falar sobre o Kevin. Uma mulher aproxima-se da personagem de Tilda Swinton, a esbofeteia e inquire como ousa sair às ruas. Não sabemos ainda o que Eva, suposta vítima, fez para merecer tal reação, mas uma estranha rotina já se sublinhou. Eva mora numa casa em estado precário, dirige um carro em pior situação ainda e suas atitudes são de quem deseja passar despercebida numa pequena cidade. Uma ironia, entre outras, quando é Tilda a emprestar altivez e altura à protagonista. Ao encontrar sua algoz, está prestes a entrar num escritório para pedir um emprego abaixo de suas credenciais. Eva quer reconstruir a vida depois de uma tragédia. Não perpetrada por ela, ao menos diretamente, mas pelo filho adolescente que provocou uma chacina na escola local com flechas de tiro ao alvo. Um drama que, ao entrar em cartaz na sexta 27, dispensa lembranças de veracidade e repercussão no cinema. Gus Van Sant e Michael Moore já abordaram tais fatos recorrentes, não só nos Estados Unidos, mas no mundo, Brasil incluído. O que talvez tenhamos pela primeira vez nesse contundente filme de Lynne Ramsay é a perspectiva de quem ficou imerso na culpa, ou seja, os pais. Enquanto acompanhamos a tentativa de reerguimento de Eva, a vemos na convivência difícil com Kevin (Ezra Miller) na adolescência, conflito originado na gestação, quando questionava a maternidade ao marido insistente (John C. Reilly). O garoto odeia a mãe, não consegue lidar com a rejeição e a via escolhida, sugere o filme, é o radicalismo. Por se ater a um universo


de família desestruturada o drama faz sua única concessão, deixando de investir numa leitura mais ampla. Ainda sim, impacta como um pesadelo.

 

 Memórias de Espírito

AS PRAIAS DE AGNÈS

Agnès Varda

Se eu fosse cortada em dois, vocês veriam o mar no meio de mim; eu amo a horizontalidade da praia, que é a horizontalidade que vejo também no cinema.” As palavras são da octogenária Agnès Varda em seu documentário que estreia tardiamente na sexta 27 apenas no CineSesc. É uma maneira poética, como sempre se dá no caso desta realizadora belga herdeira da Nouvelle Vague, de justificar o título As Praias de Agnès, de 2008. Em 1991, ela assinou um bonito tributo ao marido recém-falecido, Jacques Demy, o Jacquot de Nantes. Agora é a vez de retomar sua própria memória, e ainda em plena forma e com disposição invejável, numa seleta de lembranças que dramatiza em cenas irreverentes, imagens de arquivo, cenas de filmes, conversas com amigos e, como é habitual, sua fina autoironia.

Essa memória parte da cidade litorânea de Sète, no sul da França, onde Varda se instalou com a família e passou a infância. A partir daí, avança para a iniciação no cinema, depois de experiências na fotografia, relembra o companheiro de longa trajetória e de uma divertida passagem com Demy em Hollywood, onde foi convidado a filmar. Um jovem e desconhecido ator foi por eles descartado num teste com a justificativa de que não tinha futuro no cinema. Era Harrison Ford. No diálogo com amigos, um dos mais espirituosos é com Chris Marker. Como esse detesta aparecer, quanto mais dar entrevista, Varda utiliza do subterfúgio do amor de ambos pelos gatos. E passeia pelas ruas de Paris carregando um enorme display em forma de felino, com quem conversa alegremente. Varda é uma personagem de si mesma.

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