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Sonhos nascidos de palavras

Criada em 2012, no Rio, a Flup é hoje reconhecida como um celeiro de romancistas e poetas vindos da periferia

Sonhos nascidos de palavras
Sonhos nascidos de palavras
Escrevivência. Na edição deste ano, a homenageada foi Conceição Evaristo. Jessé Andarilho e Geovani Martins (à dir.) são dois dos autores fomentados pela festa literária – Imagem: Hildemar Terceiro/FLUP RJ e Redes Sociais
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Anderson Reef é DJ de uma batalha de rima semanal por ele fundada em 2014, sob o Viaduto de Madureira, no Rio de Janeiro. A competição, uma das principais da cidade, chega a atrair 200 ­rappers e MCs por edição.

Anos antes de inaugurar a batalha de versos improvisados, Reef havia se envolvido com o tráfico de drogas. Conseguiu, porém, afastar-se da atividade criminosa, antes que a polícia batesse à sua porta.

Desde essa época, ele sonhava viver de cultura. Ainda hoje, no entanto, necessita trabalhar como motorista de aplicativo. “Preciso rodar de carro a noite toda para juntar um dinheiro que fazia em menos de duas horas no tráfico”, diz. “Mas, hoje, coloco a cabeça no travesseiro e consigo dormir.”

Reef conversou com CartaCapital durante a 15ª Festa Literária das Periferias, a Flup, o mais importante evento de escritores e performances de literatura e música realizado em áreas de baixa renda do Rio, como Vigário Geral e Cidade de Deus.

A edição deste ano, encerrada no domingo 30, ocorreu justamente debaixo do Viaduto de Madureira, que, além da batalha de MCs de Anderson Reef, abriga também o Baile Charme, festa de black music que existe há 35 anos, e o grupo de jongo Fuzuê d’Aruanda. As três manifestações foram integradas à programação da Flup.

A homenageada de 2025 foi Conceição Evaristo, autora que criou o conceito de “escrevivência”, uma junção das palavras escrever e viver que procura apreender o significado da produção literária de mulheres negras.

Essa ideia está muito conectada aos sentidos da Flup, que, para além dos dias em que reúne as apresentações e os debates, oferece, em outros períodos, processos formativos para moradores das periferias – sempre com ênfase no bairro que está sediando o evento.

Para a edição de 2025, uma das iniciativas de formação envolveu, ao longo de quatro meses, alunos de dez escolas municipais de Madureira. O programa estimulou a produção da memória do território a partir do olhar das crianças, que fizeram textos, desenhos e maquetes representando o bairro.

Os processos formativos da Flup já se tornaram referência. O impulso inicial para esse trabalho de formação foi uma palestra da escritora Ana Maria Machado, então presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), entusiasta do projeto. Depois, foram sendo implantadas as oficinas de desenvolvimento da escrita. Delas saíram, por exemplo, Jessé Andarilho e Geovani Martins.

Andarilho morava na Favela Antares, no bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste do Rio, quando leu No Coração do Comando (Editora Record), em que Julio Ludemir narra histórias do Complexo Penitenciá­rio Frei Caneca, no Rio, e se apaixonou.

Ao saber que o autor da obra que o despertou para as possibilidades da escrita era o idealizador da Flup, ele inscreveu-se, em 2012, numa oficina promovida pelo evento.

Dois anos depois, em 2014, teve seu primeiro romance, Fiel, publicado pela Objetiva. Andarilho completou o Ensino Médio e escreveu esse livro no celular, enquanto exercia seu trabalho, de consertar smartphones. “Via que os livros eram feitos por homens brancos que não moravam na favela. E pensei: vou fazer e mandar a real”, conta.

Fiel é baseado em fatos reais ambientados na sua comunidade. Hoje, Jessé Andarilho tem quatro livros lançados. Desde 2020, ele mantém, em um posto policial desativado da Favela Antares, a biblioteca comunitária Marginow. Este ano, o projeto foi semifinalista do Prêmio Jabuti na categoria Fomento à Leitura.

Ex-camelô e ex-morador de várias favelas no Rio, da Rocinha à Barreira do Vasco, Giovani Martins escrevia desde criança, mas foi ao participar do processo formativo da Flup, em 2013, que entendeu como poderia ver seu trabalho publicado.

Naquele ano, com 22 anos e sem ter concluído o Ensino Médio, teve três de seus contos publicados em uma coletânea editada pela Flup. Em 2018, Martins teve seus contos reunidos em O Sol na Cabeça, publicado pela Companhia das Letras e vendido para mais de dez países.

Embora a palavra escrita seja o eixo dos processos formativos da Flup, a poesia falada e a imagem informativa têm espaço ali. A ilustradora Letícia Moreno, nascida em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, venceu em este ano um edital da Flup, em parceria com a Editora Voo, voltado a desenhistas negras da periferia. Tornou-se assim a autora dos desenhos do livro infantil O Sol na Cabeça, de Nayla de Oliveira, a ser publicado ano que vem.

A Flup, para Letícia, não foi exatamente uma porta de entrada na ilustração, pois desde 2021 ela presta serviços para uma agência nos Estados Unidos. Mas foi, sim, uma forma de ela se conectar à literatura negra aqui produzida

“O brasileiro médio tem o desejo de trabalhar para o exterior”, diz, sobre o caminho que trilhou. “Mas os frutos que esse trabalho no Brasil pode me gerar são inestimáveis. Vou entrar na casa de várias crianças brasileiras, algo que, trabalhando lá pra fora, eu jamais conseguiria.”

Autora de 17 livros infanto-juvenis, Simone Mota, curadora do processo formativo da Flup nas escolas – que incentiva os alunos a projetar novas possibilidades para o lugar onde vivem – contou a ­CartaCapital, durante o evento, que tinha sido procurada, ali mesmo, por duas­ crianças de 10 anos. Elas lhe pediram ajuda para terminar os livros que começaram a escrever. O tema? Sonhos. •


*O jornalista viajou a convite da Festa Literária das Periferias (Flup).

Publicado na edição n° 1391 de CartaCapital, em 10 de dezembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sonhos nascidos de palavras’

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