Cultura
Sobre mães, filhas e perdas
A coincidência de datas permite que dois dramas narrados por meninas sejam vistos conjuntamente


Um acaso feliz de lançamento aproxima dois pequenos filmes que têm mais em comum que a mesma palavra em seus títulos.
Pequena Mamãe, nos cinemas desde a quinta-feira 3, novo longa-metragem da francesa Céline Sciamma após o sublime Retrato de Uma Jovem em Chamas, sonda os ecos da morte da avó na vida de uma menina de 8 anos.
Mamãe, Mamãe, Mamãe (disponível na plataforma Filmicca), primeiro filme da diretora argentina Sol Berruezo Pichon-Rivière, também registra os efeitos de uma morte na família sobre uma garota de 12 anos.
A conexão mais evidente entre os filmes passa pela identidade feminina. Os dois dialogam com questões de gênero e abordam experiências específicas dos corpos, como a menstruação, a maternidade e a violência sexual, com uma acuidade que nenhum olhar masculino conseguiria alcançar.
Ambos os dramas têm em comum também a opção pela curta duração. Agora que todo blockbuster de boneco desafia os limites das nossas bexigas com suas 2h30 ou mais de duração, assistir a filmes de 1h05 e 1h12 é um verdadeiro alívio.
Outro traço sintético reitera o diálogo entre o filme da cineasta francesa e o da argentina. Ambos se concentram nas casas onde seus personagens se encerram em luto. Essa restrição espacial, por sua vez, impõe uma intimidade, coagindo o espectador a sair da neutralidade de observador.
Ao contrário das convenções, as mortes aqui não são usadas para forçar a emoção. Embora sejam gatilhos das histórias, elas ocorrem fora da imagem. Assim, o espectador é levado a se concentrar no que sobrevém.
Mamãe, Mamãe, Mamãe segue um estilo visual em que se reconhece a influência da diretora Lucrecia Martel. As composições desenquadradas, uma das marcas da realizadora de O Pântano, sugerem que há sempre algo a mais na cena, um espaço, uma ação, uma emoção que pressentimos, mas não é dada. Isso nos força a imaginar, em vez de satisfazer a ilusão da onisciência.
A astúcia de Pequena Mamãe, por sua vez, consiste em inserir elementos mínimos nas imagens na forma de duplicidades que provocam dúvidas, que tornam as ações indistinguíveis dos devaneios.
Nos dois casos, a imaginação deixa de ser contraposta à realidade, fuga dela, um modo de escapar, como é comum nos filmes de fantasia. Ela passa a ser um complemento da percepção, um aprofundamento, um poder de ir além, de interpretar.
Estes pequenos filmes sobre gente pequena são também minoritários, no sentido de não se subordinarem a um modelo.
São feministas não só por serem obras de mulheres e representarem questões femininas. São feministas porque desafiam a estética uniforme do cinema feito por e para machos alfa. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1198 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Sobre mães, filhas e perdas”
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