Cultura
Soberba pretensiosa
Como se deu que os célebres Cahiers com suas lições chovessem implacavelmente no molhado


A morte de Jean-Luc Godard motiva a evocação da Nouvelle Vague, cujas linhas mestras eram definidas pelos Cahiers du Cinéma, a pregar a simplicidade da filmagem e a referência à vida cotidiana. Tratava-se, no meu modesto entendimento, de algo já praticado por vários grandes diretores. Que dizer, por exemplo, de Tempos Modernos, de Chaplin? E de Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica? De The African Queen, de John Huston? E de As Vinhas da Ira, de John Ford? De verdade, as citações podem alongar-se páginas e páginas.
Mais consistente e importante para o cinema (cinema e ponto) é Jean Renoir, filho do pintor de quem várias telas são conservadas no Museu de Arte de São Paulo. Contou ele com atores extraordinários, como Jean Gabin e Pierre Fresnay. A filmografia de Renoir é imensa e ela por inteiro não discrepa das pretensiosas, jactanciosas lições, óbvias até, dos Cadernos franceses. Na linguagem dos provérbios resistentes, chovem no molhado, embora com a pompa de quem sabe tudo.
Se a Nouvelle Vague é aquela recomendada com fervor, podemos admitir que contou com inúmeros seguidores bem antes de ser anunciada. Tudo indica que eles próprios não percebiam a novidade. Hoje, dos diretores catalogados pelos Cahiers lembro com prazer de Louis Malle, autor do comovente Lacombe Lucien e o substancioso Atlantic City, na interpretação de Burt Lancaster.
François Truffaut é outro diretor de igual importância, com inovações significativas em matéria de filmagem, a marcar profundamente a sua estreia com Les Quatre Cents Coups e a carreira brilhante que seguiu. Atores de qualidade nasceram à sombra da Nouvelle Vague, o primeiro entre eles Jean-Paul Belmondo, de versatilidade e simpatia devastadoras.
Cabe também a citação de Alain Delon, conquanto tenha ele trabalhado mais na Itália com Luchino Visconti, em Rocco i Suoi Fratelli e Il Gattopardo, este uma versão cinematográfica do monumental romance de Tomasi di Lampedusa, em que contracena com Claudia Cardinale. Excelente também a sua interpretação em Monsieur Klein, dirigido por Joseph Losey.
Nascido na Itália, mas levado pelo pai antifascista para a França bem antes da Segunda Guerra Mundial, Yves Montand, na origem Ivo Livi, tornou-se mais francês do que os franceses, como ator e cantor, mas sem proximidade alguma com a Nouvelle Vague. Jeanne Moreau foi a estrela resplandecente da nova onda, sem contar Brigitte Bardot, que entra de raspão neste enredo, notabilizada por outras virtudes que não as da interpretação.
Louis Malle, John Steinbeck e Tennessee Williams, autor do script de A Rosa Tatuada, interpretado por Anna Magnani e Burt Lancaster – Imagem: Arquivo Público de NY, Archives du 7emeArt/AFP, Etienne George/Christophel Collection/AFP e Arquivo/AFP
Certo é dizer que os Cahiers du Cinéma não ensinaram coisa alguma a muitos diretores, entre eles Roberto Rossellini, por exemplo, com seu Roma, Cidade Aberta, rodado com a máquina de tomadas em equilíbrio instável sobre o ombro direito. Além de tudo, ele foi capaz de projetar uma atriz extraordinária como Anna Magnani.
Em vez dos Cadernos, filmes muito significativos na história do cinema foram inspirados em textos de grandes autores. Por exemplo, As Vinhas da Ira, de John Ford, da obra de John Steinbeck, ou Sindicato de Ladrões, direção de Elia Kazan, com Marlon Brando, que iniciou a carreira como ator de teatro interpretando a personagem Stanley Kowalski, na peça A Streetcar Named Desire, de Tennessee Williams. Assim como o mesmo Williams foi autor dos scripts de Gata em Teto de Zinco Quente, com Paul Newman e Elizabeth Taylor, e de A Rosa Tatuada, com Anna Magnani e Burt Lancaster.
Outro exemplo é Eugene O’Neall com os scripts baseados em duas obras-primas, Desire Under The Elmes, com Sophia Loren, Anthony Perkins e Burl Ives, e Longa Jornada Noite Adentro, direção de Sidney Lumet, com Katharine Hepburn e Ralph Richardson.
Permito-me admitir a possibilidade de que esses ilustres escritores tenham sido mais significativos ao influenciar toda uma produção cinematográfica de enorme peso. Arrisco-me, aliás, a admitir a possibilidade de serem eles mais competentes do que os redatores dos Cahiers. Tornavam-se autores dos scripts extraídos das suas próprias obras, com absoluto sucesso, creio eu. Creio também que os amáveis leitores me perdoem por tamanha ousadia. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1227 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE SETEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Soberba pretensiosa “
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