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Sob um mundo contaminado

Mariana Salomão Carrara narra, por meio de uma árvore, a saga de uma família pobre de agricultores gaúchos

Sob um mundo contaminado
Sob um mundo contaminado
Narradores inanimados.A autora, que é também defensora pública, ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2023 – Imagem: Renato Parada
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Todo livro de papel já foi uma árvore. Não é descabido pensar, portanto, que esses organismos vegetais estejam ligados à tradição escrita. Por isso, enquanto observa e conta a história de uma família pobre de agricultores, a árvore narradora do novo romance de Mariana Salomão Carrara está, na verdade, escrevendo.

Sozinha, a árvore mais solitária do mundo observa o trabalho repetitivo, tal qual Sísifo, da plantação e colheita de tabaco no interior do Rio Grande do Sul. “Tantos dias iguais a este. O ritual segue tão preciso e idêntico que fica difícil até para uma árvore a marcação dos dias. Pode ser por isso que eu escrevo um diário”, diz ela.

Sua voz é muito singular, seguindo o padrão da norma culta, precisamente como quem se propõe a encarar o desafio de contar uma história por escrito. Mariana Carrara explora ao máximo o potencial de uma planta narradora ao dar-lhe um modo particular de filosofar sobre a vida.

“Sou eu mesma de certa forma um enorme rolo de papel, um livro e eu somos da mesma matéria, meu pensamento já vem ele próprio escrito no papel que sou. O registro das minhas impressões sobre o que me acontece é natural como fazer nascer uma folha verde. Então, todo pensamento de árvore já é redação, não há árvore livre dos mandamentos da escrita”, reflete a árvore.

Em torno da narradora vegetal giram personagens humanos – muito ­humanos –, verossímeis em seus dramas coletivos e individuais. A escritora, que é defensora pública em São Paulo e ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura, em 2023, busca, a partir desse lugar e dessa voz, abordar o problema social e ambiental das lavouras de tabaco.

A Árvore Mais Sozinha do Mundo. Mariana Salomão Carrara. Todavia (208 págs., 69,90 reais) – Compre na Amazon

Para isso, ela coloca uma lupa sobre um microcosmo familiar constituído por avó, pai, mãe e três filhos – as duas irmãs e o menino caçula dividem uma casa e as tarefas da plantação.

O uso de agrotóxicos contamina tanto a terra quanto os humanos que dela dependem. Mais que isso, os pesticidas estão inseridos em um sistema econômico que cria dependência financeira dos agricultores. Doenças, depressão, suicídio e dívidas completam o cenário oculto por trás do comércio de cigarros. Foi essa realidade que inspirou a autora a escrever o romance.

O panorama verídico está, porém, a serviço da ficção. Um dos recursos usados por Mariana é o dos múltiplos narradores. Além da árvore, um espelho português, um traje de proteção e uma velha caminhonete completam o rol de observadores e contadores desta saga familiar.

Se a árvore adota a linguagem padronizada e narra especialmente a atividade ao ar livre, o espelho evoca tempos antigos do mundo lusófono e testemunha a vida íntima da casa: “No meu tempo e na minha terra as raparigas não se exibiam assim diante de mim, tinham mais com o que se preocupar, não é?”

A capa de proteção, ingênua, fala tal e qual uma criança de 8 anos: “A mochila de remédio é muito pesada, coitada da Maria. Ela chama de veneno, o tio Carlos também, mas alguns gostam de falar remédio. Eu falo remédio”.

A caminhonete, por sua vez, marcada pela oralidade, é uma das vozes mais afetivas: “Quando eles desencostar do meu capô vão passar vários dia sem vim aqui perto de mim a não ser que alguém vai molhar ou apanhar as cebola ali embaixo né”.

Sob o comando criativo da escritora, a variedade de narradores inanimados não soa em nada artificial. Ao contrário, eles ajudam a humanizar um cenário brutal e oculto.

Neste excelente romance, cabe justamente à árvore – a única narradora com vida – elaborar uma solução coletiva. É um pouco como se ela, a exemplo do que acontece entre as raízes de uma floresta, pudesse, mesmo em silêncio, se comunicar. •


VITRINE

Por Ana Paula Sousa

Renan Silva, vencedor do Prêmio Kindle de Literatura 2024 por A Voz Que Ninguém Escutou (José Olympio, 304 págs., 59,90 reais) insere-se na linhagem de jovens autores brasileiros que se voltam para o passado da ditadura militar para tentar compreender nossas violências.

Um dos narradores de Vento Vazio (Companhia das Letras, 224 págs., 74,90 reais) é um velho de quase 100 anos que vive numa “quina do fim do mundo”. Neste romance, Marcela Dantés engendra um povoado imaginário para aproximar-se do “umbigo” e das vozes dos loucos.

Nascida na periferia de São Paulo e formada em Nutrição, Neide Rigo é uma grande sabedora das coisas da comida – tanto dos modos de fazê-la quanto de compreendê-la. Em Comida Comum (Ubu, 192 págs., 54,90 reais), ela promove um encontro entra terra, plantas e gastronomia.

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sob um mundo contaminado’

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