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Sob o cheiro da morte, a vida

Escrito na pandemia, ‘Último Olhar’ mostra o quão imbricados estão os destinos pessoais e coletivos

Tavares é um dos autores que mais vende livros em Portugal – Imagem: Maus da Fita
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Embora viva hoje especialmente de literatura, o escritor português Miguel Sousa Tavares tem, por sua trajetória no jornalismo e pela prática como comentarista do jornal Expresso, um forte vínculo com o real que o noticiário expõe. E esse real, não poucas vezes absurdo, parece ter sido o material primário de Último Olhar, escrito entre 29 de março de 2020 e 29 de maio de 2021.

O livro começa e termina com a descrição de imagens que sintetizam uma das faces mais cruéis da pandemia de ­Covid-19: o lugar social que, durante a emergência sanitária, foi reservado aos velhos. Na primeira página, Tavares descreve o micro-ônibus que transportava, por uma Andaluzia “agonizante de pavor”, 28 velhos infectados pelo Coronavírus.

Um dos idosos, Pablo Segovia, é um dos protagonistas do romance e é, sobretudo, o elo entre presente e passado. ­Tavares revisita, no novo trabalho, o procedimento adotado em Rio das Flores, de inserir os personagens ficcionais em eventos e localizações geográficas muito reais.

À pandemia somam-se, em Último Olhar, outros eventos históricos que ceifaram muitas vidas: a Guerra Civil Espanhola e a construção dos campos de extermínio durante a Segunda Guerra Mundial.

O retorno para trás no tempo se dá por meio da árvore familiar de Pablo. Seu pai, Davi, viu a vida virar do avesso quando, em 1936, as tropas de Franco, desembarcadas do Marrocos, chegaram à Espanha. Davi integrava a militância antifascista e, inevitavelmente atado às ações do pai, Pablo veria, ainda criança, sua infância findar. Dela guardaria o gosto pelo cultivo das alcachofras, mas também o cheiro da morte.

Esse não é, porém, o único núcleo narrativo de Último Olhar. Há outro, localizado no presente, protagonizado por Inês, uma médica que corre o mundo em Congressos. Se Pablo nos é apresentado ainda menino, Inês entrará na história adulta, no momento em que se apaixona e passa a ter um amor clandestino – ­Paolo, médico intensivista italiano.

Essas aventuras paralelas são narradas com a fluidez e os laivos poéticos característicos de Tavares. Em seu jogo de armar, ele cria aquela forma de suspense que não diz respeito a tramas elaboradas, e sim à imprevisibilidade dos destinos pessoais e coletivos – no fim, quase sempre imbricados.

Último Olhar trata da morte, da vida e da sobrevivência. Mas trata, sobretudo, das vidas que, ao longo de uma existência, deixamos para trás – as boas, as ruins, as que desejamos e as que renegamos. •

Publicado na edição n° 1270 de CartaCapital, em 02 de agosto de 2023.

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