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Sob as regras do Doutor Luizinho

Como o líder do Progressistas fez andar, na Câmara, o projeto de lei que regula o streaming

Sob as regras do Doutor Luizinho
Sob as regras do Doutor Luizinho
Acordo delicado. O projeto aprovado movimenta mais de 1 bilhão de reais. Plataformas como a Netflix, produtora de Senna, foram as mais atingidas – Imagem: Netflix e Marina Ramos/Agência Câmara
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Um nome até duas semanas atrás desconhecido do setor audiovisual tornou-se, de repente, o grande articulador do Projeto de Lei que regula os serviços de streaming no País: Doutor Luizinho, chamado de doutor por ser, de fato, médico, e deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro.

Líder da bancada do Progressistas na Câmara, o parlamentar conseguiu, na terça-feira 4, por 330 votos a favor, 118 contra e 3 abstenções, aprovar o PL 8.889, cujo trâmite remonta a 2017. No dia seguinte, à tarde, foram votados os destaques. Agora, o texto segue para o Senado.

O projeto movimenta mais de 1 bilhão de reais e atinge as big techs, as plataformas de vídeo sob demanda (VoD) e os serviços online da radiodifusão. Os novos recursos têm como destino principal a produção de conteúdo audiovisual brasileiro.

Quando começou a ser debatida, oito anos atrás, a lei visava obrigar empresas estrangeiras que ofertam serviços por assinatura, como Netflix e Prime Video, a colocar mais filmes e séries brasileiras nos catálogos e contribuir para a produção de conteúdo nacional independente.

A taxa em jogo é a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine), instituída há 25 anos e paga por diferentes segmentos do audiovisual e pelas empresas de telecomunicações. Ao contrário do que foi muitas vezes difundido, as plataformas não se negam a pagar esse tributo.

A briga delas, inicialmente, era em torno de como e quanto pagar – o que se chama, no jargão, de dosimetria. Aos poucos, no entanto, essas empresas passaram a argumentar que, se elas devem recolher Condecine, os serviços de compartilhamento de conteúdo, como YouTube, ­TikTok e ­Instagram, também deveriam.

Passaram a vir, a partir daí, sobretudo das big techs as principais obstruções aos projetos que tratam do tema. Embora, ao longo do processo, muito se tenha falado do lobby do VoD, o PL 8.889 acabou por explicitar a força das big techs na disputa.

O trâmite do projeto evidencia a nova dinâmica do poder, que migrou da tevê aberta para as big techs

Enquanto os serviços de VoD foram criados para produzir e adquirir filmes e séries, cobrando por isso, as plataformas de compartilhamento baseiam-se no conteúdo gerado pelos usuários – dentre os quais está tanto quem posta vídeos de gatinhos quanto os chamados creators, produtores profissionais de conteúdo.

Ao mesmo tempo que se trata de modelos de negócio distintos, vemos a Globo produzindo dramas em formato vertical, com episódios curtíssimos, para o TikTok, e o Instagram anunciando um futuro aplicativo para smart TVs.

E se o projeto do Doutor Luizinho tocou no ponto nevrálgico da regulação é porque, na primeira versão, o texto previa que as plataformas de compartilhamento pudessem reinvestir parte da ­Condecine em conteúdo produzido pelos creators – algo inédito nos textos anteriores.

Teria sido ele, então, o primeiro a de fato compor com os deputados que representam os interesses das big techs? Historicamente, a radiodifusão tinha poder no Congresso porque muitos parlamentares possuem concessões e porque a televisão era capaz de construir e destruir reputações.

Hoje, parte desse poder migrou para as redes sociais, não apenas porque as empresas que as controlam estão entre as maiores do mundo, mas porque elas fazem parte da se engrenagem política. Muitos parlamentares são, inclusive, influencers.

Como afirmou um dos articuladores do projeto, atuando a favor da produção independente, “a Netflix não tem bancada e não tem o poder de atrapalhar a vida de um deputado”. Doutor Luizinho parece ter entendido isso melhor que quem o antecedeu nas relatorias dos PLs.

A regulação recém-aprovada deriva, especialmente, de três textos: o do senador Eduardo Gomes (PL–TO), de 2023; o do deputado André Figueiredo (PDT–CE), de 2024; e, por fim, o relatório da deputada Jandira Feghali (PCdoB–RJ), de 2025.

O projeto de Gomes chegou a ser aprovado, mas o de Jandira não conseguia avançar. Houve, além de obstruções no Congresso, a difusão de fake news, como as de que o governo queria interferir no conteúdo ou que as assinaturas dos serviços ia aumentar – mesmo sem nenhuma das empresas diretamente ligadas ao segmento ter afirmado isso.

A certa altura, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos–PB), afirmou, tanto para o Ministério da Cultura (MinC) – responsável pela articulação governista – quanto para representantes dos diferentes setores impactados pela regulação, que nomearia um terceiro relator.

Não foi, porém, sem grande surpresa que, em 27 de outubro, o MinC e o setor receberam o texto do Doutor Luizinho. O projeto foi instantaneamente criticado pelo governo, pela Strima – entidade que reúne os serviços de vídeo sob demanda pagos, como Netflix, HBO e Globoplay – e por parte dos produtores independentes brasileiros. Até a semana passada, os sindicatos que representam o lado industrial do audiovisual eram os únicos a apoiá-lo.

Formato. Parte da cota poderá ser cumprida com obras produzidas pelas empresas ligadas à radiodifusão, ou seja, com novelas como Vale Tudo, por exemplo
– Imagem: Redes Sociais/TV Globo

O texto parecia fadado ao fracasso. Mas não foi o que aconteceu. Na terça-feira de manhã, foram abertas as negociações: o deputado postou, em seus stories, uma foto em que aparece ao lado de nomes do governo, da Agência Nacional do Cinema (Ancine­) e de Paula Lavigne. A partir daí, foi um estica-e-puxa que durou até o fim da noite.

Parte da conversa na Câmara foi no sentido de que, se certos pontos considerados essenciais pelo MinC não fossem atendidos, a bancada governista poderia votar contra – ainda que a regulação seja uma bandeira de Lula na área cultural.

Alguns dos interlocutores de Luizinho disseram a CartaCapital que seu mote era: “Não tenho compromisso com ninguém”. O deputado teria sido uma escolha de Motta­ por ser um dos “cinco” mais fortes da Câmara capazes de “resolver o problema”.

O PL tal e qual foi apresentado era, no entanto, ele próprio um problema. Havia, de um lado, a reação dos que passam a ser tributados e, de outro, o desagrado de parte da produção independente, que considerava que os porcentuais de contribuição eram baixos e que a redação beneficiava as grandes empresas produtoras.

Embora, de início, o deputado tenha se mostrado reativo, ele, no fim, acatou tantas sugestões que criou o que alguns consideram até uma sobreposição de regras.

O projeto, em resumo, institui a ­Condecine-Streaming, que incidirá sobre a receita bruta das plataformas e tem alíquotas progressivas, que variam conforme o faturamento. As plataformas de VoD pagarão até 4% e poderão ter descontos se investirem na produção de conteúdo nacional.

Esses 4% são menos do que os produtores brasileiros sonhavam e mais do que as plataformas tinham aceitado pagar – 3%. Do total, 60% poderá ser investido de forma direta pelas plataformas em projetos de sua escolha e 40% irá para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), gerido pela Ancine. Há uma série de isenções e restrições previstas.

O PL, considerado pelo governo e pela produção independente como uma vitória, segue agora para o Senado

Para os serviços de compartilhamento de conteúdo, a alíquota máxima ficou em 0,8%. Inicialmente, o texto previa 2%, mas autorizava, como se disse antes, que parte disso fosse direcionado a ­youtubers e influenciadores. Uma novidade colocada no texto, no calor da votação, é que os creators vão poder acessar o FSA.

O PL institui ainda a cota para o VoD: os provedores devem oferecer ao menos 10% de conteúdo brasileiro nos catálogos. Os serviços estrangeiros pediam uma cota de 7% e queriam poder cumpri-la, ao menos parcialmente, com seus originais – produções brasileiras das quais detêm os direitos patrimoniais. Não conseguiram nem uma coisa nem outra.

Parte da cota poderá, porém, ser cumprida com obras produzidas pelas empresas da radiodifusão, ou seja, por novelas, por exemplo. A radiodifusão também conseguiu, de última hora, obter um desconto de 25% no pagamento da ­Condecine de 4%. A articulação foi feita pela TV Record, junto à bancada da oposição.

Embora não tenha, no fim, agradado ninguém 100%, o PL 8.899/2017 foi entendido pelo governo e pelos produtores brasileiros como uma vitória e pelos grandes serviços de VoD como uma derrota. Além de injetar um enorme volume de recursos no setor audiovisual, o projeto explicitou a nova dinâmica do poder tanto no Congresso quanto na sociedade. •

Publicado na edição n° 1387 de CartaCapital, em 12 de novembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sob as regras do Doutor Luizinho’

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