Cultura

Sinapse interpessoal

A humanidade toda estava ali. Era só olhar para ver

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Adiantados para o cinema, ocupamos um banco no corredor do shopping para esperar. É um mirante privilegiado para que se contemple a paisagem humana movediça que por ali desfila.

Passaram vários casais, de idades variadas, quase todos com os dedos cruzados. Passavam rindo, conversando, unidos pelos dedos trançados.

Me chamou a atenção um casal silencioso, cada qual olhando ou fingindo que olhava para as vitrines de lados opostos do corredor. Fossem idosos, poderia pensar que já se tinham cansado um do outro.

Mas não, nem a meia idade eles tinham atingido, logo, estava longe o tempo necessário para o cansaço. Seus dedos tocavam-se apenas, transformados em pequenos ganchos. Qualquer vento mais forte mandaria um para o norte e o outro para o sul. Talvez o tédio da vida, pensei, pois há pessoas assim; talvez o medo dela, que juntos e desajeitadamente começavam. 

Então passaram dois adolescentes. O braço dele passava por cima do ombro dela e segurava com a mão espalmada uma de suas nádegas. Ela o enlaçava bem apertado pela cintura. Caminhavam rápido, pensando no tempo e nas distâncias. Havia sinais de ansiedade em suas fisionomias. Pouco mais estariam trotando.

O casal seguinte estava alegre. O jovem enrolava o braço no pescoço de sua amada e ela, com as duas mãos, segurava a mão dele que pendia sobre seu peito. Este material é meu, pareciam dizer, e não tinham a menor dúvida sobre o que pareciam dizer, tão contentes caminhavam com as quatro pernas como se fossem duas. Não, não desfilavam para uma plateia, porque seus olhos ignoravam todo o entorno.

Uns tantos casais passaram com um filho pequeno, segurando cada qual uma das mãos da criança. Alguns ligavam-se pelos bracinhos do infante, e sorriam, mas outros, pelo contrário, pareciam separados justamente pelo rebento. Mesmo assim não choravam.   

Um casal acima dos quarenta passou com duas meninas no meio, um menino e outra menina nas extremidades. Os seis davam-se as mãos tão ligados que interrompiam o trânsito no sentido contrário. Era um casal arrastão. Seus passos aproximavam-se muito de passos de dança.

Enfim, muita gente passava com as mãos pendentes, inermes, alguns olhando as vitrines, a maioria empregando os olhos apenas para não errar o caminho. E entre eles, os solitários, era possível notar em suas expressões aqueles que transitavam sozinhos e felizes pela vida, enquanto outros tinham sulcos profundos no rosto de tanto tentar fugir da solidão.

A humanidade toda estava ali. Era só olhar para ver.  

Mas chegou a hora do filme e saímos de dedos cruzados na direção do cinema. Nossos dedos trançados. 

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