Cultura
Sidney Magal em versão morna
A comédia romântica musical Meu Sangue Ferve Por Você diverte, mas não faz jus à energia transgressora do artista


“Quando vi o jeito como ele olhou para ela, quis dar para ele.” Gargalhando da ideia de sentir-se atraído pelo ator que interpreta ele mesmo, Sidney Magal ilustra a sensibilidade transgressora que atraiu produtores, diretor e elenco de Meu Sangue Ferve Por Você, em cartaz a partir da quinta-feira 30.
“Eu não era uma das milhares de meninas que sonhavam casar com o Magal. Eu queria ser ele”, comenta a atriz Emanuelle Araújo, que interpreta a sogra do cantor e guarda, da época em que ele era onipresente na TV e no rádio, uma lembrança infantil. “Ele era um símbolo de liberdade pura.”
Nos anos 1970, quando estava no topo da carreira, Magal exibia uma sensualidade de amante latino, de forte apelo popular, contrastante com o contexto repressivo da ditadura. E é esse período que o longa-metragem retrata.
“Sou quase uma drag”, disse o cantor, na entrevista coletiva sobre a cinebiografia, realizada em São Paulo. “Falei para o (ator) Felipe (Bragança): se não soltar o seu lado feminino, não vai funcionar.” O receio dele não era infundado.
A performance comportada de Bragança não mobiliza a mesma energia de Sidney Magal e a caracterização do personagem acaba por depender bastante do bom design de produção que emula a estética positivamente brega nos figurinos do artista.
Na entrevista, Paulo Machline, o diretor – que antes fez filmes como O Filho Eterno (2016), além de algumas séries – contou que a ideia para o filme surgiu de uma conversa com Magal e sua companheira, Magali West. Na ocasião, a pergunta casual de ‘Como vocês se conheceram?’ levou a uma narrativa de duas horas e meia.
Sua proposta declarada foi evitar o viés enciclopédico que marca parte da leva contemporânea de biopics musicais e fechar o foco sobre um recorte específico da vida do biografado, usando as ferramentas de gênero de uma comédia romântica musical.
O potencial considerável da ideia e a tentativa de fazer um filme envolvente, que agrade a um público mais amplo – como era o de Magal décadas atrás – não se traduz no produto final, especialmente para quem não tem uma lembrança do artista em seu auge.
Os seis números musicais realistas são quase todos tímidos e a linha narrativa do romance é canibalizada pelas digressões constantes que o texto faz para verbalizar as peças-chave da narrativa – em vez de dar à audiência a chance de vê-las se desenrolar na trama.
A relação de Magal e Magali (Giovana Cordeiro) é retratada, principalmente, de forma indireta. Nas várias subtramas, aquilo que poderia ser mostrado com eles em tela – a intensidade imediata do desejo, o dilema entre o amor e a fama ou a redenção monogâmica do personagem masculino – é colocado nos diálogos dos personagens secundários.
Alguns deles, como aqueles do núcleo familiar composto pela sogra de Magal e seu tio Renan (Sidney Santiago), que tem um alter-ego, Sandra Pink, funcionam como um bem-humorado alicerce para a narrativa. Mas essas histórias paralelas, ao mesmo tempo que propiciam diversão, afastam o filme de seu eixo central, que é a história de amor do casal de protagonistas. •
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Sidney Magal em versão morna’
ENSAIO SOBRE A PERDA,
A Metade de Nós, em cartaz a partir da quinta-feira 30, acompanha um casal que busca lidar com o suicídio do filho
Rostos. Os atores Cacá Amaral e Denise Weinberg vivem os dois protagonistas – Imagem: Guilherme Sacon
A Metade de Nós, estreia de Flávio Botelho no longa-metragem, é um filme que procura captar, de modo contido e íntimo, a maneira pela qual um casal sexagenário lida com uma dor dilacerante: a do suicídio de seu único filho.
Nos papéis dos protagonistas, Francisca e Carlos, estão dois atores que contribuem muito para que a trama transcorra sem arroubos: Denise Weinberg e Cacá Amaral.
Ela, com feições endurecidas, está determinada a sofrer em silêncio. Ele, dono de um olhar mais suave, deseja que falem sobre o suicídio. Botelho, no material de divulgação do filme, conta que sua irmã se suicidou, em 2007, e que nasceu dessa experiência seu desejo de falar sobre o tema.
Carlos, ao sair de casa e ir viver no apartamento do filho, fala para o novo vizinho: quem perde pai e mãe, é órfão; quem perde a companheira, é viúvo; e quem perde o filho?
Coincidentemente, saiu agora no Brasil um livro intitulado, justamente, O Que Não Tem Nome (DBA, 152 págs., 62,90 reais). Nele, a colombiana Piedad Bonnett se coloca o seguinte desafio: como narrar a morte de um filho?
Botelho escolhe narrar essa morte a partir das duas vidas que restam: a do pai e a da mãe. Essa opção faz com que, mais até do que sobre o fim, A Metade de Nós seja sobre os recomeços.
– por Ana Paula Sousa
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