Cultura

Sgt. Pepper remixado tenta reconciliar versões do clássico dos Beatles

Em edição de 50 anos do álbum, filho de George Martin busca trazer qualidades da mix em mono para uma nova experiência em estéreo

Apoie Siga-nos no

No livro “Paz, Amor e Sgt. Pepper”, o produtor dos Beatles, George Martin, nos ensina como foi confeccionada uma das mais imagéticas faixas do cinquentenário álbum que mudou a música pop: Being for the Benefit of Mr. Kite.

Inspirada em um pôster de 1843 que convidava o público para um circo, a canção deveria passar, a pedido do compositor John Lennon, toda a atmosfera colorida do cartaz. Martin fez enorme esforço para samplear, a sua maneira, uma orquestra de órgãos a vapor e efeitos especiais em um simples canal de gravação, para dedicar os três restantes ao baixo, à voz guia e à bateria. 

Como só tinha quatro canais à disposição, Martin era obrigado a colocar dois ou mais instrumentos em uma só entrada de áudio para ter condições de introduzir novas linhas instrumentais ou vocais na canção. Longe de ser uma entrave para a criatividade, a limitação técnica e sua superação eram também uma parte essencial do processo criativo de canções como Mr. Kite, como bem definiu o beatle George Harrison, citado por Martin em seu livro:

“Se você ouvir a música dos anos 1920 e 1930, ela tem um certo som; que vem em parte da música de que você gosta e em parte da forma como foi gravada, dos amplificadores valvulados nas mesas, de como o microfone soava naqueles tempos e de toda aquela atmosfera. Isso se transforma em algo datado, como uma peça de mobília de um determinado período, que tem seu próprio charme. Você não iria querer ouvir os Beatles tocando Mr. Kite numa máquina de 48 canais, não teria o mesmo charme.”

Harrison referia-se a gravar o disco com 48 canais, mas nada diz sobre mixá-lo tendo um número infinito de entradas à disposição. Na recém-lançada versão de 50 anos de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, Giles Martin, filho de George Martin, reconstruiu o edifício lisérgico de seu pai a partir de seus tijolos originais, os canais em que cada instrumento ou voz foram originalmente gravados. O objetivo é oferecer a mesma obra ao final, mas com uma distribuição de elementos que permita maior brilho e definição para cada um deles. 

Desde as intervenções incessantes de George Lucas na trilogia original de Star Wars, a tentativa de retocar ou reformar um clássico da cultura pop não deixa de transparecer uma obsessão de criadores e detentores de direitos autorais em explorar ao máximo os ganhos com sucessos atemporais. A nova versão de Pepper poderia ser alvo de críticas semelhantes, mas tem um objetivo digno, alcançado com resultado bastante satisfatório: acertar as contas entre as versões mono e estéreo do clássico.  

Para entender o dilema, é preciso voltar aos anos 1960. Boa parte dos sistemas de som à disposição da população eram mono, ou seja, possuíam uma única caixa. Logo, não havia como posicionar instrumentos no lado direito ou esquerdo, recurso permitido a partir da invenção de aparelhos com duas saídas de áudio. Comercializados a partir do fim dos anos 1950, os sistemas estéreo não eram muito populares até o fim da década de 1960.

O próprio beatle Paul McCartney, na série documental Beatles Anthology, brinca ao lembrar como nas primeiras versões estéreo de músicas dos Beatles era obrigado a atravessar um salão para mostrar aos amigos uma linha de guitarra, audível apenas em uma das caixas de som distribuídas em lados opostos do local.

Em 1967, quando Pepper foi lançado, o estéreo ainda não era apreciado nas suas potencialidades e era mal explorado pela impossibilidade técnica e sua baixa difusão entre os consumidores. Na mixagem original de Pepper, Martin passou três semanas dedicado à versão mono e apenas três dias à estéreo. O resultado final é um disco mais pesado em mono, com maior potência no baixo e na bateria. Em estéreo, as poucas opções para posicionar os elementos do lado esquerdo ou direito acabaram por “emagrecer” o som. (ouça abaixo todas as versões). 

Nos anos seguintes, sistemas e álbuns em estéreo consolidaram-se entre os consumidores. A versão estéreo de Pepper passou a ser a principal, embora fora imaginada para ser secundária. Em entrevista ao site da revista norte-americana Variety, Giles Martin afirma que há um consenso entre muitos fãs de que a versão mono do álbum é muito superior à estéreo. 

Na mesma entrevista, o filho de Martin admite a intenção de aproximar as versões do passado. O que ele consegue, porém, vai além de garantir peso ao disco. Por ter a liberdade de manipular cada instrumento em um canal, vantagem que seu pai não tinha, ele pôde redistribuir os elementos. Na faixa-título do álbum, ele desloca uma das guitarras para o canal esquerdo, que passa a dobrar com outra guitarra-base. Na versão original, cada guitarra está de um lado. 

O resultado impressiona pela vividez de cada linha musical, inclusive dos vocais, que revelam nuances antes imperceptíveis.

Embora garanta uma experiência única e empolgante para os fãs do álbum, o remix não deve ser tratado como uma versão definitiva. As qualidades técnicas do trabalho devem ser valorizadas, especialmente por não ter desfigurado o álbum ao remontá-lo, esforçando-se para não fugir à essência do original. Vale, contudo, o respeito aos artífices da obra histórica e suas condições sociais e culturais de produção. 

Decretar a superação das versões originais seria desmerecer Harrison, para quem as músicas dos Beatles sempre teriam algo de “peça de mobília”, ou o próprio George Martin, que fez questão de destacar essa passagem em seu livro. As versões originais, em mono e estéreo, jamais deixarão de ser o álbum Pepper que levou Jimi Hendrix a tocar uma versão envenenada da faixa-título poucos dias após o lançamento. Esquecê-las em favor da nova mix seria rescrever a história, e não apenas interpretá-la, como fez brilhantemente o filho de George Martin.

Compare as edições do álbum abaixo:

Versão de 2017 

Versão Estéreo de 1967 

 

Versão Mono de 1967

 

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo