Cultura
Servos da nuvem
O economista grego Yanis Varoufakis vê surgir, no lugar do capitalismo, o feudalismo comandado pelas big techs


O que poderia ser mais agradável do que uma viagem à Grécia para conhecer Yanis Varoufakis, o carismático agitador de esquerda que tentou resistir ao Fundo Monetário Internacional (FMI), à União Europeia e a toda a ordem financeira global?
Minhas imagens mentais antes da visita são compostas de céu azul, mar azul e um prato sendo quebrado em uma alegre taverna. Mas o que me espera, à saída do aeroporto, é um muro de chamas ondulando por uma encosta junto à rodovia e uma nuvem de fumaça preta rolando pela pista.
Hoje, mesmo uma villa modernista num morro da ilha de Egina, refúgio de verão dos atenienses chiques – à qual se chega por um rápido percurso de ferry a partir do porto de Pireus – está longe de ser o santuário que talvez tenha sido outrora.
Ao final de um verão com ondas de calor e condições climáticas extremas em todo o mundo, a casa onde Varoufakis e sua mulher, a paisagista Danae Stratou, vivem desde a pandemia, parece um pouco apocalíptica. Quando estou lá, o sol é uma esfera laranja fraca lutando para brilhar através de uma névoa de fumaça. Um mês depois, a chuva equivalente à média de dois anos cairia num único dia no norte da Grécia, causando um dilúvio bíblico.
O autor descreve um mundo no qual todos os edifícios e lojas pertencem a um sujeito chamado Jeff Bezos, que determina também o que cada um verá
Não deve ser mera coincidência que o novo livro de Varoufakis, Technofeudalism: What Killed Capitalism (Tecnofeudalismo: O Que Matou o Capitalismo), tenha sido escrito nesse lugar em que o fim do mundo parece um pouco mais próximo do que em outros. E nem que Varoufakis conclua, no livro, que o capitalismo foi substituído por algo ainda pior.
Vivemos, argumenta ele, a servidão aos feudos dos nossos novos senhores globais: lorde Zuckerberg, da Facelândia, e sir Musk, do burgo podre X – letra que, do dia para a noite, passou a dar nome ao Twitter.
Quando chego de táxi ao final do caminho de terra até sua casa, o carismático agitador me recebe em um compacto Mini vermelho. “Normalmente estou na minha moto”, diz, descrevendo seu “deslocamento impecável”, em pouco mais de uma hora, até o Parlamento grego.
A motocicleta e a jaqueta de couro nunca prejudicaram sua imagem de bad boy esquerdista a enfrentar os homens cinzentos do capitalismo global. Lembremo-nos: em 2015, no auge da crise da dívida grega, Varoufakis foi catapultado da obscuridade acadêmica a ministro das Finanças.
Provocador. Bad boy esquerdista que, como ministro das Finanças da Grécia, bateu de frente com o capitalismo global, Varoufakis desenvolve uma tese que dialoga com outras teorias econômicas recentes – Imagem: Bruno Kreisky/International Forum
Ele disse – em tom alto e repetidamente – que os termos punitivos que os bancos queriam impor à Grécia levariam a uma austeridade catastrófica. A maioria dos gregos votou a favor dele e, durante um curto período, sua estratégia de discordar dos termos do FMI e da União Europeia levou a um impasse tenso. Mas esse impasse durou até o momento em que o primeiro-ministro Aléxis Tsípras, o homem que o nomeou, aceitou os tais termos.
O Financial Times rotulou-o como “o homem mais irritante na sala” durante as negociações e, por isso, não é exatamente uma surpresa constatar que o tecnofeudalismo é uma abordagem controversa, de um polemista. E, embora em 2023 não haja nada de particularmente novo ou especial no ódio à tecnologia – odiar Elon Musk é a única reação racional à situação em que nos encontramos –, Technofeudalism parece um livro importante.
Ele traz uma hipótese abrangente, enraizada em um relato histórico de como o capitalismo surgiu, e descreve uma mudança de época que ocorre uma vez por milênio. De certa forma, é um alívio que um político esteja falando sobre isso. Porque, segundo Varoufakis, o mundo não está se debatendo diante uma nova tecnologia apenas, e sim de um sistema econômico totalmente novo – e, portanto, também de um poder político.
“Imagine a seguinte cena tirada de um livro de histórias de ficção científica”, escreve ele. “Você é transportado para uma cidade cheia de pessoas que cuidam de seus negócios, vendendo bobagens, roupas, sapatos, livros, músicas, jogos e filmes. No início, tudo parece normal. Até que você começa a notar algo estranho. Acontece que todas as lojas, na verdade todos os edifícios, pertencem a um sujeito chamado Jeff. Além do mais, todo mundo anda por ruas diferentes e vê lojas diferentes porque tudo é intermediado por seu algoritmo… um algoritmo que dança ao ritmo de Jeff.”
Pode parecer um mercado, mas Varoufakis diz ser tudo menos isso. Jeff (Bezos, dono da Amazon) não produz capital: ele cobra aluguel. E isso não é capitalismo, mas feudalismo. E nós? Somos, segundo ele, “servos da nuvem”, tão desprovidos de consciência de classe que nem percebemos que nossos tuítes e publicações estão adicionando valor a essas empresas.
O livro afirma que, desprovidos de consciência, não percebemos que nossos tuítes e publicações adicionam valor a esse conjunto de empresas
Estamos em sua sala de estar arejada, onde sua mulher aparece de vez em quando e oferece água, café e salgadinhos, e espanta um labrador entusiasticamente afetuoso. Stratou e Varoufakis formam um casal tão glamouroso quanto a casa em que vivem: um espaço fresco e luminoso de concreto armado e grandes janelas de vidro com vista para o retângulo perfeito da piscina azul.
O livro Technofeudalism assume a forma de uma carta dirigida ao recém-falecido pai de Varoufakis, Georgios. Grego-egípcio comunista, ele emigrou para a Grécia na década de 1940, durante a guerra civil do país, e foi condenado a cinco anos de “reeducação política” por se recusar a criticar o comunismo. Tornou-se presidente da maior empresa siderúrgica da Grécia. O que Varoufakis mais valorizava no pai era sua capacidade de ver a “natureza dupla” das coisas.
Technofeudalism também é, em parte, uma continuação de seu livro anterior, Talking to My Daughter About the Economy (Falando com Minha Filha Sobre Economia), dirigido à sua filha Xenia, então com 11 anos. Na obra, ele tentou responder à pergunta de por que há tanta desigualdade. Mas, enquanto o escrevia, diz, sentia os receios do fim de uma era em relação às perspectivas futuras do capitalismo.
“Mesmo antes de publicá-lo, em 2017, me sentia inquieto”, diz ele no primeiro capítulo de Technofeudalism. “Entre terminar o manuscrito e ter nas mãos o livro publicado, parecia que estávamos na década de 1840 e eu prestes a publicar um livro sobre feudalismo.” Ele se perguntou então se o conceito de capitalismo não estava desatualizado.
Na estante da sala, vejo um exemplar de Zucked, do empresário Roger McNamee, um dos primeiros investidores do Facebook, responsável por apresentar Mark Zuckerberg a Sheryl Sandberg. “É um excelente livro”, diz Varoufakis. Digo-lhe que McNamee concorda amplamente com suas novas ideias. Mandei uma mensagem para várias pessoas indagando o que perguntariam a Varoufakis. Entre elas estava McNamee.
Nas mensagens, eu dizia que o livro defendia a ideia de que dois eventos cruciais transformaram a economia global: 1. A privatização da internet pelas grandes empresas tecnológicas dos Estados Unidos e da China. 2. As reações dos governos ocidentais e dos bancos centrais à grande crise financeira de 2008, quando liberaram uma onda gigantesca de dinheiro.
Li para ele a resposta de McNamee: “Eu compro a tese básica. Os Estados Unidos mantiveram as taxas de juro perto de zero entre 2009 e 2022. Isso encorajou modelos de negócios que prometiam resultados que mudariam o mundo, mesmo que fossem completamente irreais e/ou hostis ao interesse público (por exemplo, economia gig, carros autônomos, criptografia, metaverso, IA). Isto ocorreu numa altura em que não havia regulamentação da tecnologia e numa cultura segundo a qual os executivos deviam maximizar o valor das ações não importa a que preço (democracia, saúde pública, segurança pública etc.)”.
Senhores. Zuckerberg, da Facelândia, Musk, do burgo podre X, e o onipresente Bezos estão no coração do novo poder – Imagem: Redes sociais, The Royal Society e Dan Bayer/Aspen Institute
É bastante notável, saliento, que um marxista e um capitalista de risco tenham chegado às mesmas conclusões econômicas. Mas há cada vez mais pessoas – fora da política – que tentam compreender essas novas estruturas de poder. Shoshana Zuboff me disse que “rejeita explicitamente rótulos como tecnofeudalismo porque a tecnologia não é a variável independente, nem somos servos feudais”.
Shoshana também diz, no entanto, que o argumento se assemelha a um de seus últimos artigos: “Com as big techs, enfrentamos um poder totalizante que, em aspectos fundamentais, se desqualifica para ser entendido como capitalismo. Trata-se de uma forma totalmente nova de governança de poucos sobre muitos”.
Quando envio uma mensagem a Mariana Mazzucato, outra economista carismática e influente, mas que, ao contrário de Varoufakis, foi abraçada por governos e instituições financeiras, sua resposta sugere que algumas ideias de Varoufakis não são assim tão novas. Ela própria publicou, em 2018, um conceito adjacente, o de “rendas algorítmicas”, segundo o qual as empresas de tecnologia captam a atenção e a revendem, em vez de criarem valor em longo prazo.
Mas, talvez, as distinções tradicionais entre esquerda e direita não façam mais sentido. A direita, diz Varoufakis, “pensa o capitalismo como um sistema natural, um pouco como a atmosfera”. Enquanto a esquerda “pensa em si mesma como pessoas criadas pelo universo para trazer o socialismo sobre o capitalismo. Estou lhes dizendo: querem saber, vocês erraram. Vocês erraram. Alguém matou o capitalismo. Temos algo pior”.
Os primórdios da internet, diz, deram lugar a uma paisagem digital privatizada em que os guardas na porta “cobram aluguel… As pessoas que consideramos capitalistas são agora apenas uma classe vassala. Se você está produzindo coisas agora, está acabado. Você terminou. Não pode mais se tornar o senhor do mundo”.
Em Technofeudalism, Varoufakis reconta a história do Minotauro. É um mito ao qual ele retorna com frequência. Na sua versão, o Minotauro é o sistema financeiro global. No mito, a besta acaba sendo morta por um príncipe ateniense. Esse príncipe não conseguiu derrubar o capitalismo. Mas, enquanto ele e Stratou me acompanham até o táxi sob um pôr do sol alaranjado, ocorre-me que a fera pode ter se ferido mortalmente por conta própria. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1280 de CartaCapital, em 11 de outubro de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Servos da nuvem’
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