Cultura

assine e leia

Semeou bom humor

Ele próprio foi semeador por toda a vida e sua plateia teve o tamanho do Brasil. Durante a ditadura, nunca teve medo de desafiá-la com suas personagens, quando diante do vídeo postavam-se jararacas e cascavéis fardadas

Semeou bom humor
Semeou bom humor
Excepcional ator, intérprete da sua alegria espontânea - Imagem: Karime Xavier/Folhapress
Apoie Siga-nos no

Um velho amigo velho, voltado para encantar plateias, faz poucos dias foi atuar no palco do Além. Conheci Jô Soares há muitos anos, quando eu dirigia a redação de Veja. Hoje lembro dele com carinho, e da coragem que nunca lhe faltou. Desafiava a ditadura com suas personagens nos tempos em que a Globo estava livre de Ali Kamel e do decálogo de William Bonner.

Quando ele passou a ter o programa Jô Onze e Meia no SBT, me convidou amiúde e vivemos então noitadas fantásticas promovidas pela jornalista Dilea Frate. Logo em seguida, era hábito jantarmos no restaurante Massimo e lembro da noite em que, de regresso de um papo na tevê, me oferecera a oportunidade de chamar a atenção para a gola abundante dos paletós de Fernando Henrique, provocada pelo respeito, e a abnorme quantidade de pontes e túneis inaugurados por Paulo Maluf. Nos encontramos à beira de um peixe assado e de um copo de vinho e rimos horas adentro.

O seu humorismo, embora sutil, era da compreensão perfeita de qualquer gênero de espectador. Acentuo que diante do vídeo postavam-se jararacas e cascavéis, fardadas ou não, e nem por isso lhe causavam receios ou mesmo medo, era também encantador de serpentes. Certa vez, ao publicar um dos meus livros, briguei com ele porque, no retorno à Globo, não me convidara para seu programa. Arrependo-me até hoje: convidou-me um mês depois, e eu não era bem-visto naquelas paragens, muito pelo contrário.

Inesgotável a sua capacidade de criar personagens inesquecíveis, sempre representativas do período atravessado pelo Brasil em quadras sombrias ou tranquilas. Lembro de todas, e mais de algumas como aquela de rabo preso, a do pai orgulhoso incautamente do filho. Foi no teatro que o encontrei pela última vez, assistíamos à peça de Molière, ­

O ­Doente Imaginário, com Paulo ­Autran e Karin Rodrigues. Mas são tantos os inefáveis tipos do seu repertório, que é impossível omitir: sua presença na ribalta ou no restaurante, onde quer que fosse, precipitava a diversão refinada, elegante e jamais pretensiosa.

Imagem: Acervo TV Globo Imagem: Acervo TV Globo

E bem me sentia, em paz com a vida, e disposto a instantes de grande alegria toda vez que sentei no sofá ao lado dele na mesa de comando, pronto a explorar o bom humor dos visitantes e da plateia. Havia um toque afetuoso de bonomia com eles e com os assistentes, a revelar a alma boa de quem comandava o espe­táculo. Leu os meus livros, quatro ao todo, antes de publicados, sua opinião era francamente preciosa. Era culto sem alarde.

Pergunto aos meus inquisitivos (no bom sentido) botões: será possível um ser humano semear bom humor por onde quer que passe, como se dava com São Pedro, quando roçava pelas doenças dos semelhantes? Inclusive, aleijados e coxos. É este um traço muito forte do caráter do Jô, também conhecido como O Gordo, de modo a exibir popularidade, o volume mexia com os espectadores e ouvintes qual fosse um elemento da sua graça.

O Gordo, inegavelmente, faz muita falta ao Brasil, tanto mais quando não conseguimos colocar um sorriso na ponta dos lábios, por razões óbvias, creio eu, dadas as circunstâncias bolsonaristas. E, obviamente, me pego a bordar os brucutus que Jô inventaria para sustentar o premier demente. Era um excepcional ator ao interpretar as suas personagens, sujeitas às imitações de tantos, às vezes involuntárias, por obra de um estranho fenômeno pelo qual as personalidades do imitador e do imitado se confundem.

Formidável Jô, eternamente alerta para nos contar a história do seu jeito, enredo para estimular a percepção dos pendores mais recônditos da figura esculpida, antes de mais nada, com rigor artístico. Ali estava o visitante de algumas noitadas felizes, esperado fervorosamente por uma plateia da dimensão do próprio País. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1221 DE CARTACAPITAL, EM 17 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Semeou bom humor “

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo