Teve The Long And Winding Road. Como sempre. E Band On The Run. Como sempre. Teve saudações em português. Como sempre. Teve dedicatória para Linda, John e George. Como sempre. Teve fogos em Live And Let Die. Como sempre. E lágrimas, muitas, ao fim de The End, com o perdão da redundância. Como sempre.
Era tudo tão óbvio que parecia necessário: no final, o amor que você recebe é igual ao amor que você faz. Típica mensagem motivacional de Facebook. Quem não sabe disso? Mas tinha algo maior naquela voz intacta, impecável, imprescindível. Bem maior. Era a lembrança melancólica do fim da banda que fez a gente cantar a vida inteira. “Será que algum dia eles vêm aí para cantar as canções que a gente quer ouvir?”, perguntava o Tavito, lá do Clube da Esquina.
Não, eles nunca vieram. Quem veio, e tem vindo sempre, foi só, e não apenas, o Paul, o caixeiro-viajante que leva nas costas não um repertorio, mas nossas caixas de memórias, para serem abertas, ouvidas e (re) lembradas em qualquer canto do mundo onde se reúnam dois ou mais fãs em seu nome. Da arquibancada, eu, um ponto minúsculo naquela profusão de câmeras acionadas, imaginava o que faria alguém de 72 anos, com a vida ganha, repetir, dia sim/dia não, às vezes dia sim/outro também, o mesmo refrão, praticamente na mesma sequência, sempre na mesma entonação. Não cansa? Não enjoa? Ainda dá frio na barriga? Ainda desafia? Ainda emociona?
Mas as perguntas iam até o palco, batiam e voltavam. O que eu fazia ali? O que fazia sozinho, cansado, sob chuva, com o humor na lua e quase sem dinheiro depois de garantir um assento a preços imodestos naquele show que já havia assistido? Quanto valia aquela reprise, que a gente assiste, também dia sim/dia não, graças àquele VHS que o pai comprou na segunda vinda dele, em 93?
O que eu buscava, e ainda não sabia, era o silêncio, um silêncio incrustado nas caixas gigantes de som e megawatts. Pois algo parece estranho quando precisamos de três horas de barulho para degustar alguns minutos de paz. E é. Mas era isso o que eu, inconscientemente, buscava.
Esse silêncio, a certa altura da vida, a gente só alcança aos goles ou aos berros. Mas tudo o que eu havia bebido antes do show foi um suco de laranja em companhia da amiga Bárbara Castro, que me oferecera abrigo, junto com o Leandro Beguoci, para passar a noite ao fim do show. Em 2010 eu havia enchido a lata e antes do Na-na-na-na-hey-jude já não sabia onde estava: abraçava pai, irmão, primo, tio e desconhecidos com a alegria de quem mergulha numa realidade até então só conhecida pelo VHS. Há quatro anos os silêncios ainda me incomodavam, e eu podia gritar à vontade.
Desta vez cheguei quieto. Sóbrio. Mais pensativo do que deveria. Não abracei ninguém a meu lado (só havia casais ao meu redor, e não soaria bem tirar alguns deles para dançar). Estreitas, as arquibancadas do novo Palestra pareciam feitas para a gente encolher o joelho, se contorcer e se conter. Em dia de jogos, não temos tantos gols a comemorar como antes.
À entrada, postei em silencio que a Turiassu estava alagada e que, ainda assim, a torcida parecia feliz. Da última vez que isso havia acontecido a atração ainda era o Edmundo.
Ainda em silêncio, possivelmente pensando em voz alta, lembrava de um menino que passava horas sozinho tentando quebrar o silêncio de casa. Lembrava da velha caixa de som num apartamento em que bastava abrir a sacada de vidro para observar o Parque Infantil, um oásis de sombra no calor de derreter músculos e disposições na nossa cidade. De lá, com a ajuda de uma banqueta, fuçava os discos do meu pai e ouvia tudo o que me parecia velho e novo. Gastava as tardes tentando desenhar aqueles cabelos e bigode da capa de Let it Be. Eu sei, vocês não vão saber, mas naquele quarto de Araraquara a linguagem truncada entre pai e filho, criança e adulto, começava a ser traduzida pelas letras de um inglês que eu mal entendia – e que hoje parecem tão óbvias quanto dizer que ontem todos os meus problemas pareciam distantes, mas que agora preciso de um lugar para me esconder. Esse lugar ficava sob a marquise de uma arquibancada recém-inaugurada.
Aquele menino se trancava no quarto, fechava a sacada, apagava as luzes e gritava alto para imaginar como seria ouvir tudo aquilo ao vivo e a cores. Pois no show, quando comecei a cantar e as luzes se acenderam só conseguia pensar naquele quarto escuro, naquela cidade quente, naquele disco empoeirado. E me lembrava do show de quatro anos atrás. A apresentação era praticamente igual, mas eu já não era o mesmo: em quatro anos, me casei, troquei três vezes de emprego, meu vô morreu, meu filho nasceu, meu pai operou, se recuperou, parou de fumar, meu tio idem. E tudo o que eu penso, além de como vou voltar ao trabalho no dia seguinte, é se meu filho vai fuçar em meu iPod empoeirado pra quebrar, ele mesmo, os silêncios da nossa casa e preencher as lacunas das palavras que não soube dizer. Essas palavras podem ser cantadas enquanto houver memória. Enquanto puder me imaginar naquele quarto. Enquanto volto à vida normal e me pergunto se algum dia eles vêm aí. Para cantar as canções que a gente quer ouvir.