Cultura

Seleção da 45ª Mostra Internacional de Cinema expressa as incertezas do mundo pós-pandemia

Os 264 filmes são exibidos tanto nas salas, em São Paulo, quanto de forma online, para o País todo; confira os destaques

Marinheiro das Montanhas, do Brasil; A Noite do Fogo, do México; Pegando a Estrada, do Irã; O Garoto Mais Bonito do Mundo, da Suécia; Marx Pode Esperar, da Itália; Holgut, da Bélgica; e Memória, uma produção tailandesa (em ordem numérica). (FOTO: Karim Ainouz/Globo Filmes, Tatiana Huezo, Redes sociais e Mateo C. Gallego)
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“Onde estamos?”, pergunta a mãe despertando no meio da estrada. “Estamos mortos”, responde a criança, brincando de modo quase inocente. Não por acaso, esse diálogo que abre Pegando a Estrada, longa do iraniano Panah Panahi, expressa as incertezas do mundo pós-pandemia que ecoam em muitos filmes da 45ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que vai da quinta-feira 21 até o dia 3 de novembro.

A questão “para onde ir?” atravessa o filme de estreia do filho de Jafar Panahi, condenado à prisão domiciliar pelo regime iraniano, mas que seguiu filmando clandestinamente. O longa acaba de ser eleito o melhor filme no Festival de Londres e é um dos destaques da Mostra.

Exceção feita aos blockbusters – que, de resto, ocupam as telas o ano inteiro –, o evento reúne um punhado de quase tudo. Obras premiadas em festivais, títulos escolhidos para representar os países no Oscar de filme internacional e diretores cultuados por um público que há 45 anos larga até cachorro para fazer romaria cinéfila a São Paulo.

E quem não pode viajar ou ainda tem medo de compartilhar salas cheias e fazer filas imensas, não tem desculpa, pois 130 títulos estão disponíveis online, a 12 reais a sessão, na plataforma Mostra Play.

Exclusivamente no formato presencial, a Mostra é a primeira oportunidade para ver Titane, longa abrasivo da francesa Julia Ducornau, vencedor da ­Palma de Ouro em Cannes. E talvez seja a única de ver Memoria, último objeto audiovisual não identificado do tailandês ­Apichatpong Weerasethakul, que traz Tilda Swinton no elenco não será distribuído em cinemas.

Quem acha importante ver antes de todo mundo vai disputar a tapa um lugar nas sessões de A Crônica Francesa, Annette, Marx Pode Esperar, Marinheiro das Montanhas e Um Herói, de Wes Anderson, Leos Carax, Marco Bellocchio, Karim Aïnouz e Asghar Farhadi, respectivamente.

A Mostra, como todo festival importante, é também a melhor ocasião para descobrir novas e novos cineastas ou ser surpreendido por filmes abaixo do radar. A boa notícia é que na seleção da Mostra Play há dezenas de opções para quem gosta de experimentar.

De modo geral, a pandemia e os efeitos mentais e sociais do isolamento ainda não aparecem tematizados de modo frontal na safra deste ano, mas há algumas exceções. Em Diários de Otsoga, os portugueses Miguel Gomes e ­Maureen Fazendeiro desafiam o sentimento de paralisia com uma mistura de documentário e ficção que celebra a alegria de criar e os prazeres do improviso.

A recorrência de personagens adolescentes denota a inquietação diante do futuro próximo

O iraniano Distrito Terminal projeta um sinistro futuro próximo, no qual a poluição e o surgimento de um vírus letal forçam um poeta a viver enclausurado com a mãe em uma Teerã transformada em pesadelo distópico.

Dois longas-metragens de estreia de cineastas brasileiros explicitam a nossa distopia no presente. Madalena, de ­Madiano Marcheti, e A Felicidade das Coisas, de Thais Fujinaga, pressentem um país sem futuro, uma sociedade na qual se escolheu destruir tudo antes mesmo de criar.

A presença do tema da fuga em ficções de origens diversas reitera um sentimento generalizado de bloqueio que a pandemia só explicitou. Nesse sentido, Pegando a Estrada é um filme-paradigma, com sua família que vai sabe-se lá para onde, enquanto a natureza os segue, indiferente ao transitório.

A recorrência de personagens adolescentes na seleção deste ano chama atenção para a indefinição e a urgência que acompanham este momento geracional. O futuro não é algo remoto ou impalpável, mas está presente no cotidiano de protagonistas, sobretudo garotas, que precisam confrontar o mundo, a família e as tradições para poderem existir.

As personagens do mexicano A Noite do Fogo, do indonésio Yuni, do argentino Zahorí, do egípcio Souad, do suíço-ucraniano Olga, do croata Murina, do romeno Lua Azul e do kosovar Procurando por Venera vivem histórias contemporâneas, mas logo descobrem que suas escolhas são limitadas por regras a serem superadas.

Os rapazes não estão menos expostos à repressão de teor religioso ou às deformações impostas pelo ideal físico. O documentário Três Irmãos, do italiano Francesco Montagner, capta com acuidade a desorientação dos filhos de um muçulmano radical, quando o pai é preso sob acusação de terrorismo.

O Perfeito David, do argentino Felipe Gomes Aparicio, segue em tons sombrios a obsessão de um jovem para esculpir um corpão e ser aceito mediante a ostentação de códigos associados à virilidade.

Por fim, a adolescência como símbolo que reúne o intenso e o frágil está no centro de um dos títulos que despertam maior desejo. O Garoto Mais Bonito do Mundo retraça a trajetória de Björn ­Andrésen, escolhido por Luchino Visconti para representar a beleza ideal em Morte em Veneza. O que aconteceu com a perfeição quando o rapaz ficou adulto?

Essa pergunta a respeito do que vem depois também acompanha documentários que se inquietam diante do que será da natureza. Domando o Jardim descreve um esforço quase irreal para evitar o desaparecimento de árvores centenárias da rara paisagem da Geórgia. Em Holgut, o tema da extinção está ligado aos efeitos do aquecimento global na Sibéria, onde o degelo tem revelado ossadas de espécies que ressurgem para avisar que o futuro não é obra do acaso.

E aquilo que veio antes é visitado, na seleção, por documentários que recuperam as figuras de Truman Capote e ­Tennessee Williams (Truman & Tennessee) e de Ziraldo, autor do cartaz desta edição do evento.

Publicado na edição nº 1180 de CartaCapital, em 21 de outubro de 2021.

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