Cultura

Segredos de família

Os pequenos mistérios gastronômicos costumam ser desprezíveis, mas devem ser alimentados. Segue a lorota

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Estamos perto da Páscoa. Recebo enorme quantidade de notícias que me contam as criações de variados fabricantes. E, na carona da gourmetização generalizada, assim também caminha a indústria do chocolate.

Infelizmente, pouco posso palpitar. Nunca fui vítima dessa pasta que leva muitos à loucura. Aliás, aprecio mais o chocolate branco, que, segundo os especialistas, nem pode ser comparado com o outro.

O amargo, com alta porcentagem de cacau, está comprovado, faz muito bem à saúde. São os tais dos flavonoides, presentes também no vinho. Tentei durante um período consumi-lo diariamente. Desisti assim que a barra chegou ao fim.

Na comida tem gente que usa. E me refiro à comida salgada.

Um amigo jura que o feijão dele é imbatível por causa de um tantinho que ele coloca de chocolate. Vai comprar essa? Feijão com chocolate? Nunca provei e, tendo sido esse velho camarada um entusiasmado usuário de cannabis, nunca mereceu de minha parte crédito. Mas o fato é que o mole, um prato mexicano clássico, pede em sua receita um pouco de chocolate. Não posso dizer que seja um frango com chocolate, porque a quantidade recomendada em todas as receitas que vi é sempre pequena.

Quem tiver maior curiosidade procure por receitas de Moles e muitas vão aparecer. A quantidade de especiarias e pimentas presentes em todas me leva a desconfiar que se o chocolate for esquecido não fará falta. E já peço desculpas aos mexicanos. Acredito que os que se acostumaram ao mole devem sentir prontamente a ausência da doce barra de cacau.

Essa história, todavia, me faz lembrar que alguns “segredinhos” costumam ser desprezíveis. Explico melhor: acrescente uma pitadinha de 0,5 grama de cerefólio em um caldeirão de 25 litros de caldo e você vai ver em que sabor especial resultará. Em um caldeirão de 25 litros de caldo, se cair a peruca do cozinheiro ou o polegar de um subalterno insurrecto, poucos vão notar.

Mas esses pequenos mistérios precisam ser alimentados e mantidos. À medida que chegam as novas gerações, é fundamental que elas levem adiante a lorota. Minha bisavó, dizia minha avó, jamais fazia canja de galinha com o pé esquerdo da galinha. O pé esquerdo, além de produzir um mau caldo, dava um azar danado, dizia ela.

Em alguns jantares de arromba que organizei ao longo da vida, coisas estranhas foram parar no caldeirão e jamais notamos. Da mesma forma, ingredientes teoricamente importantes que deveriam finalizar um determinado prato foram esquecidos, e também o resultado não trouxe abalo à minha reputação. Ok, admito que nessas ocasiões poucos se lembravam, no dia seguinte, do que haviam comido. Mas isso foi há muito tempo.

Hoje, em idade provecta, a canja de galinha que sirvo em jantares que começam às 19 e terminam às 21 horas, além de ser feita apenas com o pé direito, precisa ser desengordurada antes.

Por outro lado, enquanto escrevia este Refô, praticamente matei a metade de um queijo português de ovelha. Você encontra nos bons mercados. Não é o mais caro deles. É feito por Antonio Anastácio e filhos. Mas é caro. Mas é muito bom.

Dentro da sugestão que fiz na última coluna, “fique em casa”, esse queijo cabe perfeitamente. Um tinto de bom porte e elegância. Sugiro um espanhol que leva o nome de Urban. Alguns bons pães, um bom azeite e umas cenouras pequenas.

As cenouras são tão boas para arejar o paladar quanto os sorbets. Convide amigos, escolha boa música e a noite será agradável. Se forem embora cedo, será perfeita. (Fazer o quê? Envelheci e acabo de entrar em meu inferno astral.)

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