Cultura

Sapatinho de judia

“Não precisou nem mesmo de uma análise mais profunda. O doutor Antônio Macário bateu os olhos naquele chumaço de folhas e foi logo dizendo: – Isso é Sapatinho de Judia! “.

"Não precisou nem mesmo de uma análise mais profunda. O doutor Antônio Macário bateu os olhos naquele chumaço de folhas e foi logo dizendo: - Isso é Sapatinho de Judia! ". Foto: guilhermejófili Flickr/Creative Commons
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Quando 1970 chegou, o sonho finalmente acabou. Depois de trocar farpas com John, Paul anunciava o seu primeiro disco solo e oficialmente o fim dos Beatles. Da mesma Inglaterra chegava outra notícia triste, era o filósofo Bertrand Russell que nos deixava para sempre. Enquanto na América o presidente Richard Nixon enviava suas tropas para o Camboja, na África do Sul o tenista negro Arthur Ashe estava proibido de entrar no país.

Em Portugal, o ditador Antônio Salazar dava o último suspiro e os portugueses respiravam um pouco mais aliviados. Muita coisa continuava no ar, inclusive um Boeing 737 da Vasp sequestrado aqui no Brasil e levado para Cuba.

Num laboratório do Serviço Nacional de Defesa Vegetal, bem no centro de Belo Horizonte, de guarda-pó imaculadamente branco, eu separava folhas de laranjeiras bichadas e colocava os maços dentro de potes de vidro. Sim, eu era Auxiliar de Agrônomo na juventude.

Foi em 1970 que o meu chefe Abdênago Lisboa chegou um dia na repartição com pacotinhos de sementes e começou a distribuir entre os funcionários. A parte que me coube foi uma semente ovalada que, segundo ele, era semente de ameixa japonesa.

Levei o pacotinho pra casa e na primeira manhã lá fui eu plantá-la na horta da minha mãe, ao lado das couves, das taiobas e das alfaces. Fiz tudo direitinho, como mandava o chefe. A semente ficou três centímetros abaixo da terra e foi regada imediatamente. No quarto dia apareceu o brotinho. Continuei regando todos os dias e com uma semana a plantinha já tinha 7 centímetros de altura. Um espanto! Com quinze dias, 18 centímetros e quando ela completou um mês, tinha mais de um metro de altura para perplexidade de todos da casa.

Percebi logo que aquele pé de ameixa japonesa era do tipo trepadeira. Providenciei um arame bem resistente para que ela pudesse subir à vontade. Com os passar dos dias ela realmente subiu e foi tomando conta do muro da nossa casa,  muro que nos separava do vizinho, seu Anselmo. Aquilo foi crescendo e crescendo e, quando vimos, o muro inteiro já estava coberto daquela planta linda, verde, vistosa. Mas nada de flores, de frutos, nada de ameixas japonesas.

Alguns meses depois catei meia dúzia de folhas e levei para a repartição porque ninguém melhor do que os engenheiros agrônomos que ali trabalhavam para fazer uma análise profunda e constatar que males tinha aquela planta para não dar flores, não dar frutos.

Não precisou nem mesmo de uma análise mais profunda. O doutor Antônio Macário bateu os olhos naquele chumaço de folhas e foi logo dizendo:

– Isso é Sapatinho de Judia!

Como assim, Sapatinho de Judia? Ele pegou um grosso compêndio de plantas tropicais que repousava em cima da sua escrivaninha e foi direto na letra S. E lá estava, com ilustração e tudo, uma frondosa trepadeira chamada Sapatinho de Judia. Entre parênteses tinha até mesmo o nome científico: Thunbergia mysorensis.

Para meu espanto e decepção, não restava a menor dúvida de que aquela planta que vinha se alastrando pelo muro era mesmo a tal Sapatinho de Judia. Voltei pra casa disposto a podá-la, mas no meio do caminho, olhando pela janela do lotação uma cidade tão árida, decidi que a planta iria ficar ali no quintal como decoração, apesar de eu ter espalhado e prometido pra toda vizinhança algumas ameixas japonesas.

Lembrei-me dessa história agora porque ao passar pelo pedágio rumo ao litoral paulista, uma simpática mocinha – moreninha dos olhos de jabuticaba – me ofereceu um pequeno vaso com uma plantinha medindo uns quatro centímetros de altura.

– É pau Brasil!

Acreditei nela, trouxe pra casa e, com o mesmo capricho de 1970, plantei num vaso maior, tomando o cuidado de colocar pedrinhas no fundo, terra preta umedecida e húmus. Já faz mais de um mês que a transplantei pro jardim do meu prédio e ela está ali, tomando sol e chuva dia e noite, crescendo bem devagar. Pelo jeito não é Sapatinho de Judia e eu fico aqui pensando: será que essa mudinha um dia vai virar uma frondosa árvore de Pau Brasil? É esperar.

Últimas crônicas de Alberto Villas

Quando 1970 chegou, o sonho finalmente acabou. Depois de trocar farpas com John, Paul anunciava o seu primeiro disco solo e oficialmente o fim dos Beatles. Da mesma Inglaterra chegava outra notícia triste, era o filósofo Bertrand Russell que nos deixava para sempre. Enquanto na América o presidente Richard Nixon enviava suas tropas para o Camboja, na África do Sul o tenista negro Arthur Ashe estava proibido de entrar no país.

Em Portugal, o ditador Antônio Salazar dava o último suspiro e os portugueses respiravam um pouco mais aliviados. Muita coisa continuava no ar, inclusive um Boeing 737 da Vasp sequestrado aqui no Brasil e levado para Cuba.

Num laboratório do Serviço Nacional de Defesa Vegetal, bem no centro de Belo Horizonte, de guarda-pó imaculadamente branco, eu separava folhas de laranjeiras bichadas e colocava os maços dentro de potes de vidro. Sim, eu era Auxiliar de Agrônomo na juventude.

Foi em 1970 que o meu chefe Abdênago Lisboa chegou um dia na repartição com pacotinhos de sementes e começou a distribuir entre os funcionários. A parte que me coube foi uma semente ovalada que, segundo ele, era semente de ameixa japonesa.

Levei o pacotinho pra casa e na primeira manhã lá fui eu plantá-la na horta da minha mãe, ao lado das couves, das taiobas e das alfaces. Fiz tudo direitinho, como mandava o chefe. A semente ficou três centímetros abaixo da terra e foi regada imediatamente. No quarto dia apareceu o brotinho. Continuei regando todos os dias e com uma semana a plantinha já tinha 7 centímetros de altura. Um espanto! Com quinze dias, 18 centímetros e quando ela completou um mês, tinha mais de um metro de altura para perplexidade de todos da casa.

Percebi logo que aquele pé de ameixa japonesa era do tipo trepadeira. Providenciei um arame bem resistente para que ela pudesse subir à vontade. Com os passar dos dias ela realmente subiu e foi tomando conta do muro da nossa casa,  muro que nos separava do vizinho, seu Anselmo. Aquilo foi crescendo e crescendo e, quando vimos, o muro inteiro já estava coberto daquela planta linda, verde, vistosa. Mas nada de flores, de frutos, nada de ameixas japonesas.

Alguns meses depois catei meia dúzia de folhas e levei para a repartição porque ninguém melhor do que os engenheiros agrônomos que ali trabalhavam para fazer uma análise profunda e constatar que males tinha aquela planta para não dar flores, não dar frutos.

Não precisou nem mesmo de uma análise mais profunda. O doutor Antônio Macário bateu os olhos naquele chumaço de folhas e foi logo dizendo:

– Isso é Sapatinho de Judia!

Como assim, Sapatinho de Judia? Ele pegou um grosso compêndio de plantas tropicais que repousava em cima da sua escrivaninha e foi direto na letra S. E lá estava, com ilustração e tudo, uma frondosa trepadeira chamada Sapatinho de Judia. Entre parênteses tinha até mesmo o nome científico: Thunbergia mysorensis.

Para meu espanto e decepção, não restava a menor dúvida de que aquela planta que vinha se alastrando pelo muro era mesmo a tal Sapatinho de Judia. Voltei pra casa disposto a podá-la, mas no meio do caminho, olhando pela janela do lotação uma cidade tão árida, decidi que a planta iria ficar ali no quintal como decoração, apesar de eu ter espalhado e prometido pra toda vizinhança algumas ameixas japonesas.

Lembrei-me dessa história agora porque ao passar pelo pedágio rumo ao litoral paulista, uma simpática mocinha – moreninha dos olhos de jabuticaba – me ofereceu um pequeno vaso com uma plantinha medindo uns quatro centímetros de altura.

– É pau Brasil!

Acreditei nela, trouxe pra casa e, com o mesmo capricho de 1970, plantei num vaso maior, tomando o cuidado de colocar pedrinhas no fundo, terra preta umedecida e húmus. Já faz mais de um mês que a transplantei pro jardim do meu prédio e ela está ali, tomando sol e chuva dia e noite, crescendo bem devagar. Pelo jeito não é Sapatinho de Judia e eu fico aqui pensando: será que essa mudinha um dia vai virar uma frondosa árvore de Pau Brasil? É esperar.

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