Cultura
Sanguessugas políticas
Em ‘O Conde’, de Pablo Larraín, o ditador Augusto Pinochet é transformado em um vampiro moribundo


Transformar a história em ficção protagonizada por fantasmas que nunca deixam de assombrar. A releitura que o diretor chileno Pablo Larraín vem fazendo dos mitos ganha um novo capítulo com O Conde. O filme conquistou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Veneza deste ano e já está disponível na Netflix.
A imaginação sarcástica do cineasta traz de volta, desta vez, o ditador chileno Augusto Pinochet transformado em vampiro moribundo. O protagonista, envolto numa capa que poderia ser do Batman, atravessa séculos de história, desde a queda do Antigo Regime na França, no fim do século XVIII, até a hegemonia do neoliberalismo.
No caminho, surgem personagens como Maria Antonieta e Margaret Thatcher, de modo a lembrar que, não importa a época, os sanguessugas estão sempre em cena.
A fotografia suntuosa em preto e branco permite ao filme abusar de imagens sanguinolentas sem provocar náuseas. Uma das mais intensas aparece no prólogo, quando o vampiro ainda jovem saboreia o sangue de uma grande dama que perdeu a cabeça.
O Conde é uma comédia de terror que provoca, no máximo, risos gelados. Associar vampirismo à matança em massa promovida por Pinochet no Chile pode ser visto como alegoria óbvia ou de mau gosto. Larraín tem consciência disso e, não por acaso, seu personagem é um moribundo.
Novas formas de apropriação, mais dissimuladas e eficazes, aparecem em contraste, revelando que é possível roubar eternamente o sangue dos outros sem sofrer acusação de assassinato em massa.
O Conde funde dois fios da trajetória de Larraín. O filme pertence à mesma linhagem de Neruda (2016), Jackie (2016) e Spencer (2019), nos quais o cineasta adotou o disfarce das cinebiografias para fazer uma autópsia do poder.
O Conde, por outro lado, retoma ideias de Tony Manero (2008), Post Mortem (2010) e No (2012), três filmes ambientados no período da ditadura chilena que revelaram e confirmaram os talentos de Larraín.
Post Mortem, o mais impactante dessa fase, narra o cotidiano de um médico legista antes e durante o golpe de Estado de 1973. No filme, disponível na MUBI e no Prime Video, Larraín aplica sua estética gélida para fazer a anatomia da política como método de eliminação.
Em uma cena antológica da autópsia do cadáver de Salvador Allende, o filme condensa o passado, o presente e talvez o futuro, revelando a contiguidade entre luz e sombra, ciência e manipulação, civilização e barbárie. •
Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.
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