Cultura

Romance brasileiro investiga a literatura portuguesa 

Miguel Sanches Neto recria vidas fictícias de escritores lusitanos para investigar seus papéis no mundo contemporâneo

Para escrever o romance, Sanches Neto fez diversas pesquisas sobre autores e a literatura portuguesa (Foto: Vilma Slomp)
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Embora O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras, 184 págs., 64,90 reais) traga o nome de um escritor em seu título, o novo romance de Miguel Sanches Neto vai muito além de falar apenas do criador do Primo Basílio. As questões centrais aqui são duas: a importância da literatura portuguesa e a centralidade da arte no mundo contemporâneo. 

Quando viveu em Portugal, entre 2015 e 2016, Sanches Neto visitou diversas casas e museus onde viveram escritores, como Camilo Castelo Branco, Fernando Pessoa e Miguel Torga. Esses passeios turísticos são o embrião de seu romance. 

“Comecei a pensar nesse livro naquela época, e foram sete anos entre sonhar com o romance, escrever, que é a parte mais dolorosa, e revisar”, conta em entrevista a CartaCapital. “Na última fase, é quando trago um valor estético. Dalton Trevisan diz que ‘revisar é cortar’”. 

O último endereço de Eça de Queiroz é narrado por um brasileiro, que assume o nome de Rodrigo S.M., célebre personagem de A Hora da Estrela, que é um escritor. Com aspiração a ser romancista, o protagonista aqui forja diversas identidades em terras portuguesas, onde sua vida se transforma a partir de um périplo por diversas cidades portuguesas.

Ao colocar um escritor como figura central em seu livro, Sanches Neto confessa que uma questão central para ele é o papel da arte, mais especificamente, a literatura, no mundo de hoje. “Em Portugal, a identidade nacional se dá pela literatura, enquanto no Brasil, é pela música. Não há nenhum juízo de valor nessa constatação, é apenas como as coisas são, e não de um país melhor que o outro.”

A viagem de Rodrigo pela literatura portuguesa – em seu sentido real e fantasioso – é, para o autor do romance, uma tentativa de seu personagem ganhar reconhecimento e lastro como escritor. “É aquela ideia de que para ser um artista de verdade é preciso estar na Europa. Isso é bem falso, como o personagem perceberá com o tempo, e deixará de ser o mentiroso em que se transformou.”

Para escrever o romance, Sanches Neto fez diversas pesquisas sobre autores e a literatura portuguesa, e de suas várias descobertas, talvez a mais impressionante seja a figura de Isabel da Nóbrega, escritora portuguesa, morta no ano passado, que viveu com José Saramago entre 1970 e 1986, e a quem foi dedicado originalmente O Memorial do Convento, que o Nobel publicou em 1982.

“Houve um apagamento da figura dessa mulher, tanto como escritora, como companheira de Saramago. Fala-se muito da primeira mulher, Ilda Reis, e da sua viúva, a espanhola Pilar del Rio. Mas Isabel foi apagada, especialmente como escritora, mesmo em Portugal. Ela foi a mulher que o ajudou a ser o escritor em que se transformou.”

Eles estiveram juntos enquanto ele escreveu alguns de seus principais livros, como Levantado do Chão, de 1980, e A Jangada de Pedra, de 1986. “Ela também foi casada, anteriormente, com João Gaspar Simões, primeiro editor da obra de Fernando Pessoa, que anos mais tarde serviria de inspiração para Saramago escrever O Ano da Morte de Ricardo Reis [de 1984]”. 

O autor escreve no romance que até hoje as contas de luz da casa onde viveram vem em nome de Saramago. “Se Saramago apagou o nome de Isabel dos livros, ela não apagou o nome dele da conta de luz”, diz o narrador do livro. Nesse sentido, Sanches Neto traz uma questão estritamente contemporânea do apagamento de artistas mulheres frente a seus companheiros mais famosos. 

Para Sanches Neto, o Nobel de Saramago, concedido em 1998, é uma honraria a toda literatura ibero-americana. “Ele era um escritor português, que vivia em Lanzarote, uma ilha espanhola. Premiar ele foi uma forma de homenagear a literatura produzida nos dois países.”

A partir de figuras reais do passado, o autor joga uma luz no presente, jogando entre a realidade e a ficção. “Não se escreve um grande livro com medo. Quando se abordam figuras reais, não se deve ter receio de as colocar numa situação polêmica conforme a necessidade da narrativa.”

Eça de Queiroz, por exemplo, volta aqui como um fantasma. Em sua vida, explica Sanches Neto, o autor se envolveu com sessões espíritas, um assunto em voga naquele momento no século XIX. Neste romance, o autor confessa buscar o Eça de antigamente. “Com sua morte, ele se tornou canônico, e sua obra parece perder a força que tinha na época da publicação. Hoje, ele é lido mais nas escolas, e mal lido, porque se tornou um escritor reverenciado. Isso amorteceu o seu valor literário.”

Para se chegar ao verdadeiro Eça de Queiroz, ou qualquer outro ou outra escritora absorvida pelo cânone e pela academia, defende Sanches Neto, é preciso os despir do respeito, e é isso que acontece neste romance. “Ele era um crítico feroz das elites de seu país, não tinha medo de tocar nas feridas da identidade nacional.”

No caso de O último endereço de Eça de Queiroz, Sanches Neto, que também é professor de literatura e reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa, explica que a identidade brasileira é questionada em seu protagonista. “Ele é um brasileiro que vai a Portugal aplicar golpes, mesmo que esteja planejando escrever um romance. É uma crítica ao colonialismo cultural de achar que vai se dar bem na Europa, mas ele se transforma num pária.”

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