Cultura

Rodrigo Vianna, o repórter que disse não

Em novo livro, o jornalista historiografa a debacle do Brasil e reflete sobre sua trajetória pessoal

O jornalista Rodrigo Vianna (Brasil de Fato/Divulgação)
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No jornalismo, não raro, os profissionais se veem diante da escolha de Neo ao conhecer Morpheus. Tomam a pílula e permanecem no ilusório, mas confortável mundo da Matrix ou optam pelo “deserto do real”. Não é uma escolha fácil, escreveria o editorialista do Estadão, o ambiente fora das corporações costuma ser inóspito, hostil. Quanto maior o conglomerado de mídia, mais sedutoras são as benesses da exposição e do reconhecimento popular. A vitrine, por sua vez, cobra a perfeição do manequim. Suprime a vontade própria, sublima o espírito crítico, controla os movimentos. Do outro lado, paira o temor do ostracismo, do “apagamento”. Sem demérito aos que ficam por falta de opção, dizer não e se jogar no “deserto do real” é um ato de bravura. Quem o faz, o faz por si, mas acaba por prestar um inestimável serviço, à profissão e ao País.

Rodrigo Vianna é um desses abnegados. O repórter tarimbado abriu mão de uma carreira sólida na maior vitrine, a Rede Globo, pelo direito à paz na consciência. Não atravessou o espelho, como Neo e outros recrutados por Morpheus. Pulou a catraca. Literalmente. O episódio, desfecho cinematográfico de sua turbulenta saída da emissora, marcou não só a trajetória do jornalista. Tornou-se o símbolo de um momento constrangedor da história recente da mídia e da tentativa de reação ao que se desenhava no horizonte. O esforço “olímpico” de quase 20 anos atrás, empreendido por um ainda jovem trabalhador com articulações firmes e tendões flexíveis, é recontado no mais recente livro de Vianna, “De Lula a Bolsonaro, combates na internet”, coletânea de artigos analíticos sobre a conjuntura publicados, em sua maioria, no blog Escrevinhador, refúgio após o desligamento da Globo, somada a reminiscências do autor.

A atualidade dos textos é perturbadora. A perenidade deve-se, antes de tudo, aos méritos do repórter, fiel ao compromisso de contextualizar, no espaço e no tempo, os acontecimentos. Não só pelo didatismo, tão decantado e tão pouco praticado nas redações. Nos tristes trópicos, a célebre frase de Marx ganha nova conotação: a história se repete, primeiro como farsa, depois como tragicomédia. Em outras palavras, conforme recordava Vianna no Escrevinhador, a elite trava, desde ao menos o início do século XX, a mesma e bem-sucedida guerra contra o trabalhismo. De Getúlio a Juscelino, de JK a Jango, de Jango a Brizola, de Brizola a Lula. É um combate sem tréguas, que não guarda domingos e feriados, nem hiberna em enganosos períodos de “paz”.

A relevância do livro vai além dessa atualidade que espicaça o âmago. Os artigos, revisitados a esta altura, registram, passo a passo, a ruína brasileira. O pulo no precipício foi calculadamente planejado, um salto ornamental digno de medalha. Os responsáveis são conhecidos, não adianta agora fazer cara de paisagem – muito menos encenar indignação com o estado de degradação moral, intelectual, social e econômica. O jornalismo “profissional”, um dos alvos recorrentes de Vianna, adubou o jardim do terror no qual floresceu, impávida, a mais fina flor do atraso, da ignorância e da barbárie. A ficha falsa de Dilma, o menino do MEP, o dossiê dos aloprados, a trama da bolinha de papel e, por fim, a parceria na farsa da Lava Jato… De maneira diligente e metódica, a mídia exerceu toda a sua falta de profissionalismo. Pior: desincumbidos da autocrítica que cobram dos demais, os meios de comunicação estão prontos a repetir a tragicomédia, caso Bolsonaro, como indicam as pesquisas, seja apeado do Palácio do Planalto pelo voto popular. Bastará o dia clarear para que recomece a eterna batalha. E tome pedra na Geni.

Em meio ao desencanto, “De Lula a Bolsonaro” é, de certa forma, uma homenagem ao jornalismo crítico no Brasil, destacado em vários artigos do volume. A batalha pela diversidade de informação continua absolutamente desigual, mas já foi pior. Nos últimos anos, outros nomes se juntaram ao esforço de oferecer um contraponto ao oligopólio midiático iniciado por CartaCapital e por Luís Nassif, Paulo Henrique Amorim e Renato Rovai. O próprio Vianna, Luiz Carlos Azenha, Cynara Menezes, Leandro Fortes, Laura Capriglione e Eleonora de Lucena agregaram novas e relevantes perspectivas. Múltiplas vozes, antes embargadas, passaram a ser ouvidas. Apesar da inevitável cacofonia, um novo polo de interpretação dos fatos se consolidou.

Há, claro, distorções exasperantes e desafios monumentais. No chamado campo progressista, proliferaram, em meio a páginas rigorosas e responsáveis, as ervas daninhas das Fake News (sim, os “Terças Livres” não são exclusividade do bolsonarismo), mitômanos e militantes cegos. Jornalistas que até outro dia chafurdavam na lama do PIG, para citar a expressão cunhada pelo ex-deputado Fernando Ferro, foram alçados à condição de heróis da mídia “independente”. A razão, não me canso de repetir, está na origem católica de parte da autodenominada esquerda. Esperar um milagre é propósito de vida. Reunidos na curva da estrada de Damasco, como se frequentassem a arquibancada do Jockey Clube, os crentes passam as tardes a torcer desesperadamente para que o cavalo derrube o ímpio e o converta à causa. Cada queda é recompensada pela imediata e inquestionável beatificação de quem viu a luz.

Nos ocasionais momentos de esperança que me pegam desprevenidos, no raiar do dia, na calada da noite, após uns, ou melhor, muitos copos, ou depois de ler escritos como aqueles reunidos em “De Lula a Bolsonaro”, deixo-me levar pela inebriante hipótese de que o fenômeno faz parte do amadurecimento da internet e do Brasil, de modo geral. Quem sabe um dia, a maioria redescobrirá o papel do bom e velho jornalismo, dos seus mais profundos valores, como alicerce da diversidade de informação, da garantia das liberdades e da democracia. Quando e se essa hora chegar, o joio será descartado. E jornalistas com o caráter de Rodrigo Vianna, protagonistas nesse processo, não se verão obrigados a pular a catraca novamente.

Serviço

De Lula a Bolsonaro – combates na internet

Rodrigo Vianna

Kotter Editorial

280 páginas

R$ 74,70

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