Riqueza dilapidada

Com esse afã de reduzir, de facilitar, abreviar tudo que esteja ao nosso alcance, é bem provável que cheguemos ao grunhido

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Será que um dia ainda teremos todos a mesma cara? Esse é um pensamento assustador. Mas parece que é um caminho sem volta. A mídia, sobretudo a TV, com seu poder de persuasão, “homogeneíza” nossas fisionomias.

Um fenômeno que talvez seja irreversível. E é uma pena, pois nossa maior riqueza, como povo, como nação, é a diversidade.

O Brasil, por enquanto, é rico em falares regionais. Lembre-se de nossa mexerica, que no Paraná é mimosa e no Rio Grande do Sul, bergamota. A mesma fruta, no Rio, deve ser tangerina. Sem falar da macaxeira, que pode ser mandioca, talvez aipim.

Em minha memória de gaúcho criado nos pampas, surgem textos que me lembram Simões Lopes Neto, escritor regionalista do Rio Grande, que viveu na passagem do século XIX para o XX: “Montei no pingo, chamei o cusco e nos atiramos por aquelas coxilhas sem fim.”

Traduzindo: Montei no cavalo, chamei o cachorro e saímos por aquelas planícies sem fim. Alguém pode objetar que o texto traduzido é mais inteligível, deve-se, portanto, dar a ele a preferência.

Abdica-se, assim, do alargamento do repertório vocabular em favor do estreitamento linguístico, que tem como consequência uma capacidade cada vez menor para o pensamento. Não só, a língua homogênea perde a graça, o poder de surpreender.


Oxente, bichinho! Com que prazer imitamos um baiano, com que gosto dizemos por aqui o que para ele é o natural. Enfim, vamos abandonar este prazer do estranhamento, do pitoresco? Aceitamos o descolorido e cinzento falar da língua geral?

Acredito que da interação entre os diversos falares é que a língua se iria enriquecendo. Mas isso não acontece mais.

Os centros mais ricos e desenvolvidos (Rio de Janeiro e São Paulo, principalmente) tendem a impor seus programas e, com eles, a cor de seu próprio mundo. Em pouco tempo, estaremos, todos nós, de sul a norte do Brasil, usando essas expressões como “fala sério” e outras mais, que a televisão planta sem adubo no coração ingênuo do povo.

José Saramago, prêmio Nobel de literatura, em uma entrevista, falando da comunicação por vias tecnológicas e sua influência sobre a comunicação geral, afirmou que ainda chegaremos ao grunhido. Não duvido.

Com esse afã de reduzir, de facilitar, abreviar tudo que esteja ao nosso alcance, é bem provável que cheguemos lá. Outro dia, assistindo a um programa na televisão, fiquei estarrecido com o discurso de um deputado, que já latia em vários registros, mas seu rosto, seu corpo, mantinham a forma original, a semelhança com outros seres humanos.

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