Cultura

Richard Linklater: “Un perdedor”

O diretor de ‘Boyhood’ sabe que a perenidade não tem relação com prêmios: seu primeiro longa nada ganhou, mas marcou a cultura pop

Richard Linklater: ficar sem um Oscar não foi exatamente uma surpresa
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Em janeiro, o filme Boyhood: Da Infância à Juventude foi o protagonista do Globo de Ouro, ao levar os prêmios de melhor filme e direção. No Oscar deste domingo 22, tornou-se coadjuvante. Ao pé da letra. Por um papel secundário, Patricia Arquette amealhou a única estatueta entregue ao longa do diretor Richard Linklater.

O reconhecimento quase nulo da Academia à saga cinematográfica de 12 anos era de se esperar. Ao contrário de outros diretores indie dos anos 1990, como Spike Jonze e Michel Gondry, vencedores da estatueta de melhor roteiro original por produções que superaram a casa dos 20 milhões de dólares, Richard Linklater não abandonou o gosto por filmes independentes e de baixo orçamento. Desde o lançamento de seu primeiro longa, Slacker (1991), Linklater não disputou grandes espaços na indústria e traçou um caminho excessivamente alternativo para os padrões de Hollywood.

Para destrinchar a longa narrativa de formação de Boyhood, na qual combina magistralmente o desenvolvimento do protagonista, o garoto Mason, e o do próprio ator, Ellar Coltrane, o diretor gastou meros 4 milhões de dólares. A distribuidora do filme, a Independent Film Chanel, tem no currículo filmes como Farenheit 9/11, de Michael Moore, e Procurando por Eric, de Ken Loach. Seus principais prêmios foram conquistados em Sundance, o maior festival de cinema independente norte-americano. O filme de Linklater foi o primeiro da distribuidora a ser indicado ao Oscar de melhor filme.

A perenidade de um filme tem, porém, pouca relação com as impressões de curto-prazo do circuito de premiações. Ao receber o Oscar de melhor diretor por Birdman, Alejandro Iñarritu filosofou: “Apenas o tempo poderá julgar nosso trabalho”. O primeiro longa de Linklater é um ótimo exemplo. Custou 23 mil dólares e não rendeu qualquer troféu. Mas sua influência sobre a juventude norte-americana e a cultura pop é certamente maior que o de Dança com Lobos, vencedor do Oscar naquele ano.

Ao conservar uma postura independente ao longo da carreira, Linklater pouco desviou do caminho que começou a trilhar no fim da década de 1980. BoyhoodSlacker têm em comum não apenas o baixo custo, mas o mesmo cenário: a cidade de Austin, capital do estado do Texas, onde Linklater morou durante boa parte de sua juventude.

Ao contrário de seu último filme, no qual há um claro protagonista, Slacker tem seu foco fragmentado em dezenas de jovens desajustados de Austin. Ao tipificar não um indivíduo, mas uma geração, o filme de Linklater tornou-se uma referência atemporal para cineastas e músicos norte-americanos.

Cidade de 800 mil habitantes, Austin é curiosa. Fica em um dos estados mais conservadores dos Estados Unidos, mas é berço de uma das cenas artísticas mais descoladas do país. Qual outra cidade reuniria 13th Floor Elevators, uma referência da psicodelia e do garage rock dos anos 60, e o louquíssimo Daniel Johnston, compositor genial, mas psicologicamente incapaz de manter o ritmo da batida de seu violão em suas apresentações?

Por essa diversidade, Austin se autoproclama “a capital mundial da música ao vivo”. Com sua quase centena de bares e diversos festivais anuais, reúne desde o fim dos anos 1980 o melhor da arte independente norte-americana e internacional.

Na primavera, o South By Southwest, uma mostra mista de música e cinema com mais de 2 mil shows distribuídos pelas casas da cidade, sempre traz ao menos dez bandas brasileiras por edição. Neste ano, Autoramas e Apanhador Só, entre outras, têm shows agendados no festival que completa 28 anos.

slacker ‘Slacker’ tem foco fragmentado em dezenas de jovens desajustados de Austin

Coicidência ou não, Linklater começou a rodar seu primeiro longa no ano seguinte à primeira edição do festival. Em Slacker, atenta-se para um fenômeno sociológico típico do fim da década de 1980: o surgimento de jovens de classe-média relutantes aos valores yuppies de enriquecimento pessoal e sucesso profissional consagrados nos governos de Ronald Regan e George Bush.

O filme de Linklater aborda os chamados “dropouts”, que abandonaram seus cursos universitários para viver de sua arte ou de bicos irrelevantes. Fãs de música tosca e de baixa fidelidade, com certa tara por violência visual e um niilismo político quase doutrinário, os slackers (vagabundos, indolentes) eram a nova cara da contracultura juvenil.

Em oposição aos punks dos anos 70, essa nova geração dava pouco valor à crítica social e ao guarda-roupa: no lugar das pulseiras de couro com espinhos e dos coturnos, camisas básicas, jeans e Adidas. No toca-discos, The Wire, The Fall, Sonic Youth e bandas piscodélicas dos anos 60.

Em Slacker, Linklater flana preguiçosamente, com déficit de atenção, pelas esquinas e becos de Austin, em meio a personagens entediados ou entretidos em conversas paranóicas sobre George Bush, a Guerra do Golfo, a arte no pós-modernismo, a esquerda no pós-guerra fria, a banalização da violência, a realidade confrontada com a televisão.

Apesar de limitado como qualquer rótulo, o estereótipo do slacker sugerido por Linklater virou até um gênero musical. Bandas e artistas como Beck, Ween, Guided By Voices e Pavement representavam valores comungados pela juventude de seu filme ao compor canções “de perdedor”, com guitarras desafinadas sutilmente, ou soterradas por efeitos, letras irônicas, um desinteresse por exposição visual ou até pelo próprio público. Não tardou para a mídia musical, inspirada no filme de Linklater, cunhar o termo slacker rock para defini-las.

Stephen Malkmus, vocalista e principal compositor do Pavement, pode até não gostar que sua música seja tachada de slacker rock. Mas não rejeita o termo para si próprio. “Música muito arrumada e cabeça, eu simplesmente não gosto. É mais importante quando alguém canta com o coração, sem exigir que tudo esteja firme e perfeito. Sou um slacker irremediável” disse o músico, em entrevista de 2011.

Com uma carreira de 20 discos, Malkmus considera Slanted and Enchanted, lançado no mesmo ano de Slacker, um de seus melhores álbuns. Um LP violento nos arranjos e doce nas melodias, esquisito, cheio de canções pop maltratadas por guitarras estridentes, baterias confusas e solitárias linhas de baixo com o papel de organizar a bagunça.

Mal gravado e executado, mas cheio de energia criativa, o álbum traz letras irônicas, verborrágicas e cheias de referências distribuídas em versos quase nunca lineares. A canção Here, a mais pop, é um hino slacker.  “Eu estava vestido para o sucesso, mas o sucesso, ele nunca vem”, cantava Malkmus, cuja própria trajetória profissional e escolar confunde-se com a dos personagens do filme de Linklater. Durante a gravação de Slanted and Enchanted, o vocalista e guitarrista trabalhava como segurança do Whitney Museum of Art, em Nova York, após desistir de seguir a carreira de historiador.

O tal slacker rock pareceu à mídia musical da época o epíteto perfeito para definir uma nova geração de músicos que viria a confrontar a disposição negativa e depressiva do grunge, capitaneado pelo Nirvana de Kurt Cobain, que atingiu o estrelato quando Linklater e Pavement ainda debutavam nas suas áreas.

Um aspecto importante sobre a cultura independente norte-americana é sua capacidade de se regenerar, por constituir um mercado com maior autosuficiência, dada a grande rede de lojas, rádios e casas de show alternativas no país.

Após o rock ter atravessado os anos 80 imerso neste circuito, o sucesso comercial de Nevermind (1991), do Nirvana, transformou o grunge e suas letras sobre famílias destruídas, depressão e fascínio por drogas pesadas em status quo da música pop no início dos anos 90.

Bandas foram formatadas para soarem e seguirem aquela mesma sonoridade e atitude, o que gerou uma resistência cultural sadia. Lançado no mesmo ano de Nevermind, Slanted and Enchanted era uma alternativa divertida e calorosa ao excesso de dor e individualismo consagrado nas letras do grunge. Inaugurou uma nova cena, paralela a que se ouvia nas rádios.

Quem ouvir hoje Mac Demarco, roqueiro canadense cujos shows são caóticos ao extremo, perceberá que aquela geração de desajustados dos anos 90 deixou um legado incálculável para a música pop.

A despeito da derrota de Linklater no Oscar, alguns dos ídolos slackers galgaram degraus inimagináveis: Beck foi premiado com um Grammy recentemente, mesmo a contragosto do rapper Kayne West. Mas quem poderá esquecer os versos de seu hit máximo, Loser?

“Sou um perdedor, meu bem, então por que você não me mata?”, cantava Beck em 1994, com cabelos desgrenhados e roupas folgadas.

 

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